domingo, fevereiro 18, 2007

Originalmente publicado no http://www.oestadodotapajos.com.br/l_flavio.htm

A disputa entre os Maiorana e Jader Barbalho se transformou numa guerra suja. Os dois contendores perderam o próprio controle e descambaram para uma agressão tão rasteira que passou a ofender o decoro público. Se não pararem, como será aproxima batalha? Durante 20 anos o Jornal Popular, de Silas Assis, foi o padrão da imprensa marrom no Pará. Hoje, O Liberal e o Diário do Pará disputam essa posição. Praticam o jornalismo sensacionalista, para o qual não interessa a apuração dos fatos e a elucidação da verdade. O objetivo é atingir, ofender e sangrar o adversário, nem que para isso seja preciso derrubar todas as pedras éticas e morais existentes no caminho, deixando como saldo uma terra arrasada. Jornalismo de campanha não é novidade no Pará, nem em qualquer outro lugar. Mas se imaginava que as idiossincrasias e ódios pessoais estivessem contidos pela busca da profissionalização. O Liberal se proclama um dos jornais mais bem impressos do país, graças a uma rotativa de última geração, que entrou em funcionamento no ano passado. Já o Diário do Pará acaba de divulgar uma pesquisa do Ibope que o situa como o jornal mais lido do Estado, superando o adversário por muitos corpos, façanha até recentemente considerada impossível. Por que ambos retroagem? A troca de ofensas entre os dois grupos, que dominam a comunicação no nono mais populoso Estado do federação, resulta de uma lei da física, pervertida na sua aplicação política: dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço no sítio do poder. E ambos querem cada vez mais tudo que imaginam possível nessa geografia do mando. Por isso, não são apenas extensões ou projeções do poder institucional: ocupam posições nesse condomínio exclusivo, discriminatório. O Diário do Pará foi criado, em 1982, exatamente com essa missão: permitir que o deputado federal Jader Barbalho tivesse eco na sua primeira campanha eleitoral para o governo. As portas de O Liberal, que lhe estiveram completamente franqueadas até a véspera, lhe foram interditadas no momento crucial. A Província do Pará, o terceiro jornal (que hoje tanta falta faz) procurava não se envolver. Se atendesse ao coração, Romulo Maiorana teria continuado com os antigos amigos, “baratistas” como ele, obrigados a trocar o PSD de Magalhães Barata pelo MDB (e, depois, PMDB) de Jader. Em 1982 o partido foi vitaminado pelo então governador Alacid Nunes, um homem do sistema até esse momento, mas que a inimizade visceral com o ex-aliado Jarbas Passarinho fez pular para o lado da oposição, na qual nunca se acomodaria, por mal de origem. Mas Romulo tinha que apoiar os candidatos do regime militar, o mesmo regime que lhe dera um precioso canal de televisão, com o qual se juntaria ao milionário reinado da Rede Globo, a despeito do veto dos órgãos de segurança do próprio governo a um cidadão que aparecia em suas fichas secretas acusado de contrabandista. No Pará, o regime militar estabelecido em 1964 visou sempre mais a corrupção, simbolizada pelo contrabando, do que a subversão, da qual uma esquerda francamente festiva sempre foi o abre-alas – ruidoso e quase inofensivo. Romulo cumpriu sua parte no trato, firmado ainda na década de 60 (e renovado permanentemente a partir de então, por iniciativa espontânea de um ou cobrança “por quem de direito”), com o competente suporte jurídico do advogado Otávio Mendonça e o endosso (pelo lado do “sistema”) de seu cunhado, o general Gustavo Moraes Rego, um “castelista-geiselista” de largos costados. Ainda assim, Romulo mandava constantes recados, informais ou através do seu próprio jornal, de que torcia – e até contribuía obliquamente, escapando à marcação cerrada e em cima dos aliados compulsórios – para a vitória dos “neobaratistas”. O fundador do império Maiorana pagou caro pela opção por Oziel Carneiro (candidato ao governo) e Jarbas Passarinho (ao Senado), ambos derrotados por Jader e Hélio Gueiros (o novo senador), numa eleição que assinalou uma nova mudança no eixo do poder. Ao ser despejado da coluna Repórter 70, da qual era um dos “cardeais”, e do círculo mais próximo de Romulo, Gueiros fez de sua coluna no Diário do Pará um instrumento cirúrgico para lancetar todas as feridas da biografia do ex-amigo, ex-correligionário e ex-patrão, que o mantivera escrevendo em seu jornal. Para tanto, resistira a pressões do “sistema”, o nome dos “porões sinceros, mas radicais”, que constituíam a expressão da violência ao longo dos governos militares. Os artigos, notas e comentários escritos por Hélio Gueiros no Diário e, posteriormente, no Jornal Popular, traziam consigo a escatologia dos combates terríveis que os velhos “baratistas” travaram, ao longo de quase três décadas, com o mais temido dos seus adversários, o jornalista Paulo Maranhão, dono e principal redator das Folhas (do Norte e Vespertina). Nesses duelos, não importava quem estava com a razão: o critério da verdade era substituído pelo estrondo das afirmativas e a maestria em expô-las por escrito. Não havia regras no confronto. Às vezes ganhava o que mais sabia ofender, não o mais certo. Velhos e novos “baratistas” tinham diante de si, em 1982, um quadro semelhante ao que prevaleceu até o final da década de 50: um adversário muito mais poderoso, não só em meios físicos, como também em capacidade intelectual. Vencê-lo, freqüentemente, exigia golpes baixos, muitíssimo baixos. Por ironia, porém, o pequeno e débil O Liberal, de Magalhães Barata (o único bem patrimonial que o caudilho recebeu da política), era agora um gigante – só que estava do outro lado, atacando os “baratistas”. Era preciso fustigá-lo, usando contra ele o que jazia em seus próprios intestinos, devolvendo-lhe as entranhas como veneno. Daí a fúria e virulência de Hélio Gueiros. Ele colocou para fora segredos de alcova e intimidades partilhadas sob o código da ormetà, do silêncio, que constitui a razão de ser de todas as máfias, tenham ou não esse nome de batismo. O que saiu no Diário do Pará daqueles dias de campanha eleitoral jaz como a sordidez da imprensa marrom, sobretudo em relação ao passado de Déa, a esposa de Romulo Maiorana. Material, apesar disso, constantemente reaquecido e servido ao distinto público, como se fora um produto natural. Foi o que aconteceu no domingo passado, 4, na principal coluna do Diário do Pará. Como o Repórter Diário não tem autor, a responsabilidade legal deve ser partilhada entre o seu proprietário e o diretor de redação. Mas o estilo das três notas sucessivas da coluna esconde quem as escreveu tanto quanto os trajes sumários das portentosas foliãs que desfilam como destaques das escolas de samba do carnaval carioca escondem suas – digamos assim – intimidades. A personagem das notas não é identificada nominalmente, mas sua descrição dispensa apresentação: visa o passado da presidente das Organizações Romulo Maiorana e matriarca da família. O texto foi escrito com fel e fezes para não deixar dúvida quanto ao propósito de quem o produziu, conforme já fizera outras vezes em momentos semelhantes: era para ofender mesmo, deliberadamente. Uma ofensa reativa a outra ofensa, ou a uma sucessão delas, disparadas a partir da fortaleza de O Liberal contra o deputado Jader Barbalho, sua família, aderentes, amigos e correligionários. Nessa guerra, o jornalismo, com seus princípios e normas, é detalhe – e detalhe absolutamente irrelevante: ele serve apenas de instrumento para o acerto de contas entre os dois grupos (mas eles não têm motivo algum para se julgar ofendidos se forem chamados de máfias). Ambos têm quase sempre razão quando se atacam e quase não têm nenhuma quando se defendem. Nessas constantes e crescentes escaramuças, parece mais fácil atacar Jader Barbalho. Afinal, ele é – e sempre foi – um político profissional. Foi o que herdou do pai, também político – patrimônio que logo tratou de multiplicar, ampliando essa herança várias vezes. Ele estaria agora enfrentando problemas, como um em cada sete parlamentares no país (tomando a Câmara Federal como parâmetro), mas não seria o belzebu da corrupção, como é apresentado no Pará, se também não tivesse se tornado empresário – e empresário no mesmo segmento de negócio dos Maiorana. Ao invés de retornar ao ninho antigo, como fez Hélio Gueiros em 1987, quando assumiu o governo e voltou a prestar homenagens e fazer contribuições sonantes aos parceiros (mas também sendo o primeiro de uma série de governadores a veicular propaganda oficial no jornal de Silas Assis, com isso criando seu plano B em relação aos Maiorana), Jader decidiu manter o Diário. Não só o manteve: mais rápido do que podem admitir até as aparências, formou um novo império, que aos poucos foi se ombreando ao dos Maiorana. Além de não fazer rapapé aos donos da comunicação no Pará, passou a combatê-los em todos os níveis. Seria menos fácil fustigar os herdeiros de Romulo Maiorana se eles aplicassem sua competência a solidificar seus negócios na ampla e complexa área de comunicação de massa. Mas alguns deles, com ênfase na parte masculina do clã, buscam o poder em um grau tal que os obriga a passar da esfera empresarial para a política. Nesta, especificamente, não demonstraram competência: tanto Romulo Maiorana Júnior quanto Ronaldo Maiorana fracassaram nas preliminares das tentativas de obter um mandato eletivo. Decidiram então transformar suas vontades em fonte de poder, usando como ferramenta de combate suas empresas jornalísticas. Todos os donos de empresas de comunicação fazem isso e alguns já fizeram o que os irmãos Maiorana continuam a fazer. Mas a maioria preferiu profissionalizar suas corporações. Mesmo quando esse estágio não foi alcançado, circunscreveram seu poder de fazer seus jornais, televisões ou rádios refletirem o que pensam ou querem à mediação do público e às características do veículo. Essa auto-limitação simplesmente inexiste no caso do grupo Liberal. Seus donos acham que podem tudo. Nesse paroxismo, deixaram de ver a realidade; e o que é pior: passaram a acreditar em suas fantasias e invenções. Os registros documentais disponíveis já provaram o contrário, mas o jornal O Liberal continua a se anunciar como o mais lido não só do Pará, mas também do Norte e Nordeste do Brasil (nesta segunda dimensão, o que jamais chegou a ser, a inverdade lhe custou caro quando A Tarde, de Salvador, contribuiu para aparecerem em publico dados dos arquivos do IVC sobre a falsa tiragem de O Liberal em 2005). Os excessos de voluntarismo dos irmãos Maiorana se materializaram durante duas semanas no Repórter 70: a par de tiroteios verbais nas outras páginas do jornal, nelas revestidos da aparência de reportagens e notícias, a coluna passou a tratar seus adversários de forma amolecada, com adjetivos deliberadamente ofensivos, como “Jader Gazeteiro Barbalho”. A escala chegou a um ponto que fez “Domingos-Cheio-de-Processos Juvenil” reagir com um artigo no mesmo nível, publicado com todo destaque em espaço nobre do Diário do Pará. Por coincidência (ou não), esse tipo de tratamento desapareceu do R-70 no dia seguinte. Voltou, com outra forma, mais atenuada, no último dia 5. A ofensiva, entretanto, prosseguiu, com outras variantes. Aliados de exatamente ontem passaram a ser alvejados como facínoras e imorais por servirem ao esquema político pessoal (e do PMDB) de consolidação de Jader Barbalho, hoje o principal aliado da governadora Ana Júlia Carepa, do PT. Os tiros procuravam a atingir parte mais sensível da armadura do ex-senador quando alcançaram a sua esposa. O Liberal chegou ao requinte de publicar duas vezes, no dia 3, a mesma matéria, no mesmo caderno, com separação de apenas sete páginas, reproduzindo entrevista do americano (residente no Brasil) Jason Kohn, diretor do documentário Mandando Bala (Send a Bullet), que já saíra dias antes. Kohn dedicou seu premiado filme a três casos de corrupção no Brasil. Um deles é o do ranário de Márcia Centeno Barbalho, aprovado pela Sudam e beneficiado com recursos dos incentivos fiscais do governo federal na gestão do ex-deputado estadual Arthur Tourinho, que ocupou o cargo por indicação do marido da beneficiária. O caso teria todos os ingredientes para ser exemplar do imoral e desmedido desvio de dinheiro público. Essa sangria desatada irriga enriquecimentos particulares no Brasil e contribui decisivamente para a ineficácia do governo e o agravamento da concentração de renda (e de poder) no Brasil, como é difícil de ocorrer em qualquer outro lugar do planeta. Mas um exame acurado da trajetória da criação de rãs de Márcia Barbalho pelos escaninhos viciados da Sudam revelará uma surpresa: esse projeto não pertence exatamente à genealogia dos projetos podres aprovados e tratados a leite de pato pela Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia, que justificaram sua extinção súbita. Ao invés de fazer essa análise, praticamente todos os jornalistas que escreveram sobre o tema preferiram valer-se do “efeito osmose” de Jader Barbalho: toda acusação de corrupção atirada contra ele, gruda. Mesmo se eventualmente ele não tenha culpa, ou a culpa tenha outra fisionomia, na dúvida é aconselhável imputar-lhe o dano. O ex-ministro tem tanto do que prestar contas que dificilmente poderá defender-se satisfatoriamente, ou mesmo tentará se explicar. Daí a estratégia do silêncio e da ocultação que adotou, levando-o a atuar nos bastidores, à distância dos refletores, o que acabou por constituir sua especialidade (estigmatizado de público, é conselheiro informal de notáveis, como o presidente Lula). A investida contra sua mulher, com quem se casou no curso de muitos incidentes, até a separação da deputada federal Elcione Barbalho, tirou o líder do PMDB da sua tradicional postura fria, a julgar pela nota com a qual revidou no seu jornal, visando exatamente o alto do grupo adversário, com uma arma capaz de realmente feri-lo. A leitura das três notas do Repórter Diário do dia 4 choca qualquer um, sobretudo porque grande parte dela é simplesmente inventada, produto da imaginação maldosa de quem procura dar-lhe credibilidade pela verossimilhança (não é, mas pode parecer). No entanto, o impacto das seguidas matérias publicadas em O Liberal contra seus inimigos tem diferença apenas de tom. O nível caiu ao mais profundo subsolo no Diário, que deverá pagar caro pela desmedida agressão, se não em relação ao agredido (se ele não reagir no mesmo diapasão), certamente junto ao público. Mas a sabedoria popular define tais casos com o ditado: “quem planta ventos, colhe tempestades”. O observador atento e isento dessa guerra não pode deixar de defini-la como a disputa de grupos, quadrilhas ou máfias, conforme queira permitir-se um adjetivo. O que não conseguirá é circunscrever essa troca de ofensas nos limites do jornalismo. Em jornalismo, o denominador comum, a razão de ser e a essência são os fatos. Todas as interpretações e ilações a partir deles são permitidas, mas só com base neles. Numa disputa por poder, fatos são circunstâncias. O que prevalece é a lei do mais forte, para cuja medição de forças há recursos como palavras ou ferramentas mais contundentes de imediato, que resultam em tragédias. O novo presidente do legislativo estadual, deputado Domingos Juvenil, do PMDB, tem o direito de se sentir ofendido com a alcunha que o Repórter 70 lhe aplicou, reagindo com indignação. Mas entre um e outro adjetivo mais pesado, é obrigado a falar sobre o conteúdo dos 44 processos, inquéritos ou sindicâncias a que o jornal diz que ele responde, em diversas instâncias e situações. Este é o aspecto do interesse público que cumpre a um homem público atender. Não basta devolver a ofensa com outra ofensa. A democracia possibilita que cada um diga o que quer dizer, seja obrigado a ouvir o que não quer ouvir e informe o que é preciso informar. Sem esse conjunto, a democracia, capenga, é apenas um valor formal, um faz-de-conta. Assim devia ser com todos os homens públicos, mais ou menos controversos, como o sempre notório Jader Barbalho ou os só eventualmente destacados, como os deputados-médicos que O Liberal passou a atacar, mas só a partir de um interesse contrariado (até então, eles estavam acima de qualquer suspeita). A imprensa, mediadora e intérprete da sociedade em relação ao poder institucional (e suas pulverizações ou agregações informais), não pode pretender ser, ela própria, um poder autônomo – e, como acontece no Pará, sem limites. Sua legitimidade deriva do seu conteúdo. Sua força, da responsabilidade no agir. Se o que ela publica se define conforme a biruta dos seus próprios interesses, mudando conforme a direção do vento dominante (ou do vento que ela própria sopra artificialmente), para se usar uma metáfora meteorológica muito apropriada ao caso, então ela deixa de ser um instrumento da democracia para se tornar uma ameaça. Porque tanto o que mostra quanto o que esconde, o tanto que revela como o tanto que oculta no que diz, depende apenas do desejo do dono, não da dinâmica dos fatos, da tessitura deles, que constitui a história, da qual é o cronista cotidiano, o reportador. Nesse caso, sempre, a imprensa vira quitanda e o jornalista se transmuta em bufão. E quem aceita essa ópera bufa se avilta, fazendo da vida em sociedade uma geléia geral, na qual, tudo sendo permitido, prevalece a vontade do mais forte. Ou do mais selvagem. É por isso que Belém destes dias soa muito à Chicago de muitas décadas atrás. Não por mera coincidência, alguns dos mais poderosos personagens emergem da mesma famiglia, sobre cuja instituição uma apropriada frase italiana diz bastante: parente, serpente. O Pará, ao que parece, está virando um serpentário. É o que querem os paraenses? Num ninho de serpentes, ninguém está livre de sofrer uma picada venenosa. Quem será a próxima vítima?

Nenhum comentário:

Postar um comentário