domingo, novembro 16, 2014

Mãos limpas; e depois, Berlusconi?



Na Itália, em 1992, cerca de 1.300 réus foram condenados. Cinco grandes partidos desapareceram. O que emergiu, porém, não foi uma república virtuosa.

Por Saul Leblon, no editorial da Carta Maior.

Aplausos: o combate à corrupção no Brasil finalmente alcançou a esfera dos corruptores.

A operação da PF desfechada nesta sexta-feira para desbaratar o esquema de propinas na Petrobrás incluiu 25 prisões de graúdos personagens do mundo empresarial.

Entre eles, presidentes, diretores e altos funcionários de grupos como a Camargo Corrêa, OAS, Queiroz Galvão, ademais de um ex-diretor da Petrobras, demitido pela presidenta Dilma Rousseff juntamente com Paulo Roberto Costa, em 2012.

O que se assiste com certo ar de incredulidade ainda, é um primeiro passo daquilo que qualquer país disposto a atacar de frente a corrupção tem que transformar em rotina.

Ou seja, atravessar a porta que separa o sabido do nunca escancarado.

Lá dentro guardada a sete chaves está a contabilidade paralela do capital privado, origem e destino dos malfeitos em torno dos quais orbitam personagens de um sistema eleitoral degenerado, e burocracias públicas carcomidas.

Que tenha vindo para ficar, são os votos.

Sem ilusões, porém.

O combate policial embora seja um passo importante é insuficiente.

Corrupção não é uma singularidade capitalista.

Ou esquerdista.

Ela é endêmica em sociedades dissociadas da transparência que só um salto na democracia participativa   –que atinja organicamente os centros de decisão do Estado, da vida das empresas e da mecânica eleitoral— pode realmente propiciar.

Caso contrário, a história se repete.

Não raro, como tragédia, na forma de um desencanto político que frequentemente  instala no poder versões extremadas  daquilo que se pretendia extinguir

É oportuno lembrar.

A ‘Operação Mãos Limpas’ realizada na Itália, em 1992, figura como uma das  principais referências no combate à endogamia entre o dinheiro privado e a política.

Lá como cá o núcleo dos ilícitos começava nas distorções de financiamento do sistema eleitoral.

E terminava sabe-se onde.

A devassa ocupou dois anos e expediu 2.993 mandados de prisão; 6.059 figurões tiveram as contas e patrimônios dissecados  --entre eles, 872 empresários  e 438 parlamentares, incluindo-se  quatro  ex- primeiros-ministros.

Não terminou em pizza.

Cerca de  1.300  réus foram condenados; apenas 150 absolvidos.

Não faltaram suicídios, assassinatos, fugas e humilhações.

O furacão jurídico destruiu a Primeira República Italiana.

Cinco grandes partidos, incluindo-se a Democracia Cristã, o Partido Socialista e o Partido Comunista, o maior e mais estruturado do ocidente, viraram poeira da história.

Desapareceram.

O espaço que se abriu, porém,   não encontrou forças mobilizadas, tampouco projetos organizados e nem propostas críveis  para catalisar a revolta e a desilusão da sociedade.

O passo seguinte não foi o surgimento de uma república emancipadora e revigorada.

As causas do anticlímax   remetem a décadas antes.

O sistema partidário italiano, condenado na tomografia da corrupção, na verdade já se descolara da representação da sociedade há muito tempo.

No campo da esquerda, o caso do PCI é o mais dramático pela importância e a influência que exerceu em toda a luta progressista mundial.

As raízes da deriva remetiam a uma discutível interpretação de Gramsci.

Não um erro teórico.

Não uma questão acadêmica.  Uma leitura política seletiva, conveniente à orientação caudatária da Rússia aos PCs da Europa então.

Qual seja?  Não afrontar o poder de classe no território da economia e da luta política de massa.

Optou o PCI, então, com raro talento, diga-se, pela construção de uma hegemonia fortemente vincada em pilares intelectuais e culturais provedores de prestígio e influência.

Uma hegemonia, mas pela metade: 50% de Gramsci; 50% de rendição histórica ao capital.

Uma hegemonia invertebrada do ponto de vista da organização para o exercício efetivo do poder.

Aos poucos, abriu-se um fosso.

De um lado, reinava a indiscutível qualidade intelectual e artística da esquerda comunista italiana, respeitada em todo o mundo.

De outro, transformações objetivas em curso.

Uma classe trabalhadora muito distinta daquela iluminada nos filmes do neo realismo de Rosselini e De Sica era modelada nos rigores de um capitalismo em transformação, para pior.

Quando a ‘Mãos Limpas’ atingiu os partidos, Tatcher  já atingira letalmente os pisos salariais  e os direitos sociais na Europa, a social democracia já flertava com os albores neoliberais  e o Muro de Berlim caíra três anos antes. 

Esmagada pela compressão salarial interna e externa, a classe trabalhadora italiana tornara-se, ao mesmo tempo, refém da massificação do consumo e da dissolução das referências históricas.

O distanciamento intelectual entre a hegemonia cultural do PCI e aquilo que as redes de comunicação, sobretudo a andrajosa qualidade da televisão italiana, expeliam diuturnamente cavou um fosso regressivo.

Deu-se então o que se sabe.

 O que emergiu no rastro do Mãos Limpas não foi uma república virtuoso e sim o horror na forma de uma liderança bufa, que substituiu a hegemonia de Gramsci pela indigência de sua rede de televisão.

Tragicamente, o que se pretendia combater, ganhou impulso avassalador.

A independência entre o poder político e o poder econômico   desapareceu.

Um país desprovido de partidos fortes, desiludido de suas lideranças virou refém de Il Cavaliere, um capo despudoramente representativo do vazio chocado em uma sociedade atomizada, feita de estilhaços humanos fatiados pelo consumo e por um sistema de comunicação excretor de valores afins.

Não foi um espasmo ou um ponto fora da curva.

Silvio Berlusconi e sua fortuna de US$ 6 bilhões ficaram nove anos no poder, em três mandatos subsequentes, entre 1994 e 2011.

Foi o primeiro ministro  que mais tempo ficou no poder da Itália no pós-guerra.

Sua rede de televisão substituiu o PCI, o PSI, a DC e construiu a hegemonia sobre as massas italianas da qual os comunistas se descuidaram.

A tragédia encerra lições à esquerda mundial.

Mas de forma dilacerante a do Brasil.

A toda a esquerda; ao PT em especial.

A ação policial contra a corrupção é importante; deve ser ininterrupta; não pode ser seletiva.

Menos ainda míope a ponto de excluir de seu foco –  reiteradamente— certos episódios exclamativos.

Tão exclamativos que chamaram a atenção da justiça  na Suíça, mas nunca aguçaram a perspicácia da PF brasileira ou dos combativos ‘moros’ de plantão.

Caso do propinoduto no metrô do PSDB em São Paulo, por exemplo.

Para citar apenas um caso, em uma dúzia.

Investigue-se.

Tudo.

Mas o passar a limpo não vai  criar um sistema político regenerado, nem impedir que ele continue a regredir em direção a coisa pior.

Sem partidos fortes, com  desassombro programático para catalisar a sociedade e resgatar a luta pelo desenvolvimento,  a anomia que favorece as excrescências aguarda o país na  esquina.

Berlusconis, bolsonaros, lobões, terceiras vias diversas, oportunistas de bico longo e outras versões de morbidez histórica estão à espreita.

Formam padrões recorrentes na borra da dissolução, quando o velho ainda não morreu e o novo não tem força para emergir.

A história, de qualquer forma, aperta o passo no Brasil.

E não por aceleração da iniciativa progressista.

Tampouco porque o novo está prestes a emergir.   

Mas há uma certeza, cada dia mais evidente: a esquerda não tem mais o direito de perguntar que horas são.

A pergunta não é quanto falta, mas quanto tempo ainda resta.

Quanto tempo resta para as lideranças progressistas tomarem consciência de que precisam sentar, conversar, limar sectarismos e  firmar uma agenda de rua, para sustentar e influenciar o governo eleito democraticamente no longínquo 26 de outubro de 2014.

Antes que seja tarde.

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