sábado, janeiro 30, 2021

A conta da vergonha do toma lá dá cá, na compra de votos feita por Bolsonaro

A propagada defesa da autonomia do Legislativo, usada como justificativa pelos parlamentares para votar em Arthur Lira, é um discurso falacioso. Esta semana, o próprio presidente Jair Bolsonaro falou abertamente sobre seus planos de interferir nos destinos da casa, onde tramitam 61 pedidos de impeachment contra ele. 
 

Via Revista Crusoé, exclusiva para assinantes

A exaustão dos brasileiros diante de sucessivos escândalos de corrupção levou à renovação recorde de mais de 50% na Câmara dos Deputados em 2018. A chegada de novatos, com a promessa de sepultar práticas históricas como o toma lá dá cá, representou um sopro de esperança para a sociedade. O discurso de oxigenação política, entretanto, não resistiu à realpolitik de Brasília, cujos métodos pouco republicanos o presidente Jair Bolsonaro jurou combater antes de eleito. As negociações conduzidas pelo Palácio do Planalto para as eleições às presidências da Câmara e do Senado retratam cenas de fisiologismo a céu aberto. Acossado por ameaças de CPIs, pelo fantasma do impeachment e por investigações que se aproximam de sua família, Jair Bolsonaro resolveu abrir os cofres para eleger o deputado Arthur Lira, líder do Centrão, e o senador Rodrigo Pacheco, do DEM, aos comandos das duas casas Legislativas. Diversas tabelas de negociação de emendas circularam em Brasília ao longo da semana, mas nem os governistas sabem precisar ao certo o valor que está em jogo. Uma das planilhas com detalhamento dos municípios beneficiados mostra a destinação de verbas que somam 636 milhões de reais para os parlamentares gastarem em obras em seus redutos eleitorais. Outro documento, informal, prevê repasses que totalizam 3 bilhões de reais do orçamento da União a deputados e senadores dispostos a votar em Lira e Pacheco.

As negociações para a liberação de emendas são conduzidas pelo ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, em seu próprio gabinete. O general está com a agenda lotada e tem recebido em sequência parlamentares, sobretudo os do Centrão, que se aglomeram na fila de espera para obter recursos de emendas e promessas de postos estratégicos na Esplanada. Outras tratativas não aparecem nos compromissos oficiais do ministro: em encontros discretos ou em telefonemas, Ramos conversa com dissidentes de partidos que oficialmente apoiam o candidato Baleia Rossi, do MDB. Há traidores em várias legendas como PDT, PSB e DEM – todos devidamente recompensados com vagas em estatais ou liberações de recursos para as bases. Além de despejar recursos, Ramos, sob a regência de Bolsonaro, promete cargos em estatais a deputados influentes e já negocia a futura reforma ministerial com os líderes dos partidos envolvidos nas negociatas, como o Progressistas, o PL e o Republicanos. Por exemplo, em troca do voto em Lira, o Centrão trabalha para emplacar o pastor Marcos Pereira, do Republicanos, no Ministério da Cidadania no lugar de Onyx Lorenzoni – com isso, o partido garantiria o direito de controlar o dinheiro do eventual futuro coronavoucher e de um remodelado Bolsa Família. Já para quem resiste a apoiar Lira ou Pacheco sobra retaliação: são condenados a entregar cargos que já controlam na administração federal. Os beneficiários dos cargos vagos são os que topam votar nos candidatos do Palácio do Planalto.

A lista de municípios já beneficiados com emendas de eleitores de Arthur Lira, à qual Crusoé teve acesso, tem 520 cidades. A maioria dos recursos é do Ministério do Desenvolvimento Regional, mas há ainda a liberação de milhões de reais do Ministério da Agricultura e do Ministério do Turismo – neste caso, boa parte das localidades contempladas não tem nenhuma vocação para receber visitantes. Uma delas é Brasiléia, no Acre, que vai ganhar 2,6 milhões de reais do Ministério do Turismo, para “projetos de infraestrutura turística”. A prefeita da cidade, Fernanda Hassem, do PT, reconheceu que os recursos foram liberados graças à deputada Vanda Milani, do Solidariedade. O comando do partido fechou com Baleia, mas a sigla tem inúmeros dissidentes, como Vanda, que fez parte da comitiva de Arthur Lira na visita ao Acre, no último dia 7. Depois do anúncio do empenho da emenda, que a parlamentar tentava viabilizar sem sucesso desde junho, a prefeita convocou às pressas uma equipe da associação de municípios do estado para auxiliar na adequação do projeto. O recurso deve ser usado para a construção de uma “orla” às margens da BR-317, rodovia que liga Brasiléia ao município de Assis Brasil.

Adriano Machado/Crusoé

A deputada Gorete Pereira, do PL do Ceará, assumiu como suplente o mandato da deputada petista Luizianne Lins há pouco mais de um mês. Ficará só quatro meses no cargo, durante uma licença da titular, mas aproveita enquanto pode a vitrine do mandato. Em troca do apoio a Lira, Gorete conseguiu emendas para municípios cearenses como Cariús, e garantiu fotos em reuniões ao lado de pelo menos quatro ministros para suas redes sociais. A deputada esteve com Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura, Milton Ribeiro, da Educação, Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, além de Luiz Eduardo Ramos, que é quem comanda o toma lá dá cá. O acesso livre a gabinetes de ministros, para que deputados tirem fotos e prometam verbas para suas bases eleitorais, é outra moeda de troca que tem agradado a parlamentares, especialmente os do baixo clero, não habituados com os corredores mais restritos do poder. Na lista das negociações, Cariús receberá 960 mil reais em emendas. Aliados do prefeito recém-eleito da cidade, Willamar Palácio, também do PL, confirmaram que o recurso chegou pelas mãos de Gorete Pereira. Já o deputado Genecias Noronha, do Solidariedade do Ceará, conseguiu 2,8 milhões de reais para o município de Parambu. A cidade é comandada por Rômulo Noronha, de 24 anos, sobrinho e correligionário do deputado. Desde que assumiu o cargo, o jovem tem se gabado por ter portas abertas no gabinete do diretor-geral do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, Fernando Marcondes Leão, indicado para o cargo por Arthur Lira, em maio do ano passado.

Além das emendas já asseguradas, os deputados governistas do Solidariedade do Ceará nutrem a expectativa de indicar nomes para órgãos federais de orçamento robusto. Este mês, em retaliação ao deputado Heitor Freire, do PSL, por não declarar apoio a Lira, o governo exonerou o coronel Júlio Aquino da Superintendência do Ibama no estado. O Planalto demitiu ainda a chefe do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes, o Dnit, no Ceará. Engenheira e servidora de carreira da autarquia, Líris Silveira Campelo perdeu a vaga para que o cargo de orçamento milionário fosse ofertado a aliados de Arthur Lira. A exoneração da técnica é um retrato da guinada no discurso anticorrupção de Jair Bolsonaro. A demitida Líris já testemunhou na Justiça contra Joaquim Guedes, ex-superintendente do Dnit acusado de fraude em contratos. Em sentença condenatória proferida em julho do ano passado contra o ex-dirigente do órgão, a Justiça frisou que a servidora não aceitou fazer parte de conchavos na autarquia. É um caso que ilustra bem a situação: uma funcionária de carreira elogiada por caçar corruptos foi enxotada para dar lugar a um apadrinhado do fisiológico Centrão.

A Direção de Infraestrutura e Gestão Portuária da Companhia de Docas do Ceará também está sem comando e entrou nas costuras políticas pela eleição de Arthur Lira. As novas nomeações serão efetivadas no início de fevereiro, logo depois da eleição da Câmara, marcada para esta segunda-feira, 1º. Enquanto parlamentares do Solidariedade alinhados ao Planalto são agraciados, deputados da legenda que contrariaram as ordens do governo sofreram punições. Áureo Ribeiro, do Rio de Janeiro, controlava dois cargos na Superintendência do Ministério da Agricultura no estado. Na semana passada, o ministro Luiz Eduardo Ramos telefonou para o presidente do Solidariedade, Paulinho da Força, para avisar que o governo iria demitir os indicados do parlamentar, que é eleitor de Baleia Rossi.

Hildo Rocha, do MDB do Maranhão, é mais um que integra o rol de parlamentares punidos pelo Planalto. Ele havia indicado Jones Rocha para a chefia regional da Codevasf, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba. O governo avisou Hildo que, sem declaração pública de apoio a Lira, ele perderia a indicação. “O MDB tem candidato à presidência da Câmara, eu não poderia votar no Arthur Lira por uma questão partidária. Além disso, o Progressistas no Maranhão apoia o Flávio Dino, que é meu adversário político”, justifica Hildo. No estado, um dos maiores contemplados por emendas do varejão de Lira é Aluísio Mendes, líder do PSC, que coordena localmente a campanha do candidato do Planalto à presidência da Câmara.

A propagada defesa da autonomia do Legislativo, usada como justificativa pelos parlamentares para votar em Arthur Lira, é um discurso falacioso. Esta semana, o próprio presidente Jair Bolsonaro falou abertamente sobre seus planos de interferir nos destinos da casa, onde tramitam 61 pedidos de impeachment contra ele. “Vamos, se Deus quiser, participar, influir na presidência da Câmara com esses parlamentares”, reconheceu o presidente da República na última quarta-feira, 27, depois de um encontro com integrantes do PSL que, eleitos com o discurso de combater o Centrão, acabaram se transformando no próprio Centrão.

No balcão de negócios do Congresso, parlamentares de esquerda também entraram no espírito do toma lá dá cá. Cássio Andrade, do PSB do Pará, obteve recursos para vários municípios do estado, como a capital, Belém. A cidade terá ao menos duas emendas negociadas por Arthur Lira, nos valores de 1,9 milhão de reais e 2,3 milhões de reais. O voto pró-Lira de Cássio Andrade está em todas as planilhas de aliados do candidato do Progressistas. 



O deputado Robério Monteiro, do PDT do Ceará, também está na conta de eleitores de Lira. A mulher dele, Ana Flávia Monteiro, do PSB, é prefeita do município de Acaraú, uma das 12 cidades cearenses que já têm previsão de liberação de emendas. O valor para a cidade é o maior do estado: 6,4 milhões. Se existem as traições, por assim dizer, ideológicas, as traições partidárias mais ruidosas e com maior potencial de consequências políticas são as protagonizadas pelo DEM, partido do atual presidente da Câmara, Rodrigo Maia, padrinho da candidatura de Baleia Rossi.

Agência Senado

A infidelidade de setores do DEM está diretamente relacionada ao comando central da Codevasf, controlada por indicados do deputado baiano Elmar Nascimento. Como o DEM não quer perder o feudo político, parlamentares liderados por Nascimento trocaram Baleia por Lira, sem qualquer constrangimento, o que levou a um desgaste público entre Rodrigo Maia e o presidente nacional do DEM, ACM Neto, seu amigo de longa data. O presidente da Câmara tentou pressionar o ex-prefeito de Salvador em busca de uma declaração pública mais incisiva em favor de Baleia Rossi, mas ACM Neto, de forma silenciosa, deu aval aos deputados que bandearam para o lado do Palácio do Planalto – um comportamento que lembra bastante o do avô dele, Antonio Carlos Magalhães. Maia chegou a dizer ao antigo amigo que, nessa toada, o DEM vai ganhar o rótulo de “partido da boquinha”. Irritado com o assédio aos deputados do DEM, o presidente da Câmara também telefonou para o ministro-general Luiz Eduardo Ramos na noite de terça-feira, 26, e, bastante exaltado, reclamou da interferência de Bolsonaro na disputa pela presidência da Câmara. Na conversa, Ramos teve a coragem de dizer que o Planalto estava mantendo distância da disputa, já que Lira é quem estaria coordenando sua própria campanha. O discurso de Ramos aos parlamentares é outro. Crusoé apurou que o ministro tem dito a deputados que se compromete a quitar 100% das emendas impositivas de anos anteriores que ainda não foram pagas e negocia ainda recursos extraorçamentários. Ao todo, o Tesouro já liberou meio bilhão de reais em emendas somente no mês de janeiro. Só que faltam 17,2 bilhões de reais de emendas apresentadas em 2020 que não foram executadas.

Para além dos acordos de coxia destinados a eleger Lira e Pacheco aos comandos da Câmara e Senado, a conta da sobrevivência política de Bolsonaro é ainda mais salgada. Inclui no pacote a reformulação do Bolsa Família – o programa assistencial será ampliado e o valor do benefício passará por um reajuste – e a retomada do auxílio emergencial, a despeito da resistência do ministro da Economia, Paulo Guedes. O pagamento do benefício alavancou a popularidade de Bolsonaro durante a pandemia, mas o repasse acabou em dezembro. Pressionado pela queda de popularidade em razão de sua deplorável condução do combate ao coronavírus, o presidente está inclinado a ceder às pressões pela criação do novo coronavoucher. Guedes já apresentou sua condição: a volta do auxílio precisa estar atrelada a uma trava para o aumento de gastos em outras áreas, como educação e segurança. A expectativa no governo é de que haja um meio termo para que a negociação seja boa para todas as partes. O Centrão, para variar, já está de olho. Além de cargos e emendas, o bloco fisiológico quer apadrinhar outros programas e obras que poderão sair do papel se o governo ignorar a responsabilidade fiscal. “Os parlamentares racionalizam suas decisões com o intuito de conseguir a reeleição ou de pavimentar a trajetória para cargos no Executivo, por exemplo. O dinheiro é o caminho mais fácil”, diz o cientista político Ranulfo Paranhos, professor da Universidade Federal de Alagoas.

O problema é que a estratégia do vale-tudo terá impacto não apenas orçamentário, mas político. Mesmo que Arthur Lira e Rodrigo Pacheco se sagrem vitoriosos na eleição marcada para a próxima segunda-feira, Bolsonaro sairá das disputas mais fraco politicamente do que entrou. Além de se tornar definitivamente refém do Centrão, a fatura da manutenção do apoio a um presidente cuja popularidade derrete e que permanece com a espada do impeachment pendurada sobre sua cabeça será muito mais cara – talvez até impagável. E a história mostra no que isso pode dar.

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