Por José Varella*
Fiz as contas e percebi que em 2010, caso aguente até lá, vou completar 50 anos de luta. Claro, sem heroismo, mas alguma curiosidade. Trata-se duma "cachaça" pela qual minha companheira me presenteou, com sutil puxão de orelha, com uma significativa estatueta de Dom Quixote de La Mancha...
Troféu da Utopia que trago próxima à "escrivaninha" junto a outras lembranças (dentre as quais uma centenária imagem de santa Rita de Cássia, cuja tradição familiar quer fazer crer que foi achada em campo de batalha, na guerra genocida do Paraguai, por meu bisavô paterno “voluntário da Pátria” arrastado do Pará para matar e morrer em nome da tríple aliança armada pela Inglaterra contra insolentes guaranis contrários as maravilhas do liberalismo.
Desculpem a pavulagem de caboco, mas exatamente no ano de 1960, aos 23 anos de idade, na cidadezinha de Ponta de Pedras, terra natal de Dalcídio Jurandir; acompanhado de conterrâneos em odor de ignorância política apoiados pelo vigário jesuíta da paróquia inventamos o pretensioso "Grêmio Cultural Marajó". Como se sabe, na América Latina onde tem vestígio de indio há jesuíta, para o bem e o mal. No caso marajoara, era pajelança de meia tijela mas dava para quebra a rotina à beira do rio com teatro mambembe na casa paroquial sem alternativa.
O grêmio era simples coletivo duma vagabundagem depois da sesta à sombra de seculares mangueiras plantadas pelo primeiro intendente do município, que marcava ponto na porta da taberna denominada "Casa Poronga", do "capitalista" do grupo. Desde então eu já fazia figura de “comunista” pelo simples fato de ser enamorado de cooperativas rurais e simpatizante da reforma agrária prometida pelo presidente-fazendeiro Jango Goulart.
Nós nos identificávamos como a "turma da Poronga", hoje a coisa poderia ser classificada por agentes da ordem como "gang". Felizmente, naqueles idos e vividos lugares do Fim do Mundo a gente estava apenas a meia maré de distância do paraíso. Criamos um tipo de senha : "eh da Poronga!", com que nos saudávamos uns aos outros.
Foi lá nas tardes mornas da Poronga, no extremo-norte dalcidiano; que nasceu o ingênuo "Grêmio Cultural" filho bastardo do analfabetismo político, pois que parido do engano quanto às intenções de um panfleto “galinha verde” (integralista) com nome de movimento águia branca, feito sob medida como arapuca para seduzir e capturar os sentimentos patrióticos da rapaziada desavisada... Mau começo de uma história torta pela parte que me cabe deste latifúndio. Só não me envergonho da mancada ideológica da mocidade, pois que acabei me encontrando em companhia de Dom Helder Câmara, outro desenganado que virou da água para o vinho. Me lembro de um relato especial que nos fez pensar sobre a necessidade de virar o jogo.
Disse um dos nossos que ouvira, por acaso, dois senhores "barões" sair do banho da maré, às 4 horas da tarde, horário do Inferno Verde; na ponte da Casa da Beira; mui contentes a filosofar (sem saber) sobre economia política. "Que seria de nós, os ricos – disse o primeiro barão dos tijucos – sem os pobres..." No que o outro barão das várzeas concordou, tacitamente, sem comentário com riso cínico estampado da cara gorda.
Ora, aquilo caiu como uma bomba em meio à "turma da Poronga"! Pra quem não sabe, "poronga" é a lamparina de querosene que seringueiro leva madrugada adentro na floresta escura para "tirar" seringa (extrair o látex). Era tão óbvia a diferença de classes na vila ribeirinha que causava espanto a gente não tivesse antes percebido o abismo do Fim do Mundo... Então, por acaso, minha avó deu-me a ler o romance "Marajó" escrito por tio ausente no Rio de Janeiro cujo nome fora marcado no catecismo do arcebispo do Pará, Dom Mário de Miranda Vilas-Boas, como prejudicial aos católicos.
A estória para o moço da Poronga foi história pura! Pois o sítio da tia ficava justamente no rio do romance e quando a velha contava era, paresque, a versão original do tio Dalcídio... Diacho! O "Marajó" completou 70 anos desde a escrita em Salvaterra e minha “derradeira” quixotada (campanha pela reconstrução da Casa de Dalcidio Jurandir e reestruturação do Museu do Marajó) é a conclusão daqueles dias da "turma da Poronga".
Moral da história: que seria dos ricos se não fossem os pobres aguentar a retranca? Espanta haver tanta riqueza para aliviar a pobreza mais cruel e os ricos ser acometidos de mania de suicídio coletivo transformando pobres distraídos na margem da história em miseráveis desesperados. Se Freud não explica, Marx todavia avisou.
Troféu da Utopia que trago próxima à "escrivaninha" junto a outras lembranças (dentre as quais uma centenária imagem de santa Rita de Cássia, cuja tradição familiar quer fazer crer que foi achada em campo de batalha, na guerra genocida do Paraguai, por meu bisavô paterno “voluntário da Pátria” arrastado do Pará para matar e morrer em nome da tríple aliança armada pela Inglaterra contra insolentes guaranis contrários as maravilhas do liberalismo.
Desculpem a pavulagem de caboco, mas exatamente no ano de 1960, aos 23 anos de idade, na cidadezinha de Ponta de Pedras, terra natal de Dalcídio Jurandir; acompanhado de conterrâneos em odor de ignorância política apoiados pelo vigário jesuíta da paróquia inventamos o pretensioso "Grêmio Cultural Marajó". Como se sabe, na América Latina onde tem vestígio de indio há jesuíta, para o bem e o mal. No caso marajoara, era pajelança de meia tijela mas dava para quebra a rotina à beira do rio com teatro mambembe na casa paroquial sem alternativa.
O grêmio era simples coletivo duma vagabundagem depois da sesta à sombra de seculares mangueiras plantadas pelo primeiro intendente do município, que marcava ponto na porta da taberna denominada "Casa Poronga", do "capitalista" do grupo. Desde então eu já fazia figura de “comunista” pelo simples fato de ser enamorado de cooperativas rurais e simpatizante da reforma agrária prometida pelo presidente-fazendeiro Jango Goulart.
Nós nos identificávamos como a "turma da Poronga", hoje a coisa poderia ser classificada por agentes da ordem como "gang". Felizmente, naqueles idos e vividos lugares do Fim do Mundo a gente estava apenas a meia maré de distância do paraíso. Criamos um tipo de senha : "eh da Poronga!", com que nos saudávamos uns aos outros.
Foi lá nas tardes mornas da Poronga, no extremo-norte dalcidiano; que nasceu o ingênuo "Grêmio Cultural" filho bastardo do analfabetismo político, pois que parido do engano quanto às intenções de um panfleto “galinha verde” (integralista) com nome de movimento águia branca, feito sob medida como arapuca para seduzir e capturar os sentimentos patrióticos da rapaziada desavisada... Mau começo de uma história torta pela parte que me cabe deste latifúndio. Só não me envergonho da mancada ideológica da mocidade, pois que acabei me encontrando em companhia de Dom Helder Câmara, outro desenganado que virou da água para o vinho. Me lembro de um relato especial que nos fez pensar sobre a necessidade de virar o jogo.
Disse um dos nossos que ouvira, por acaso, dois senhores "barões" sair do banho da maré, às 4 horas da tarde, horário do Inferno Verde; na ponte da Casa da Beira; mui contentes a filosofar (sem saber) sobre economia política. "Que seria de nós, os ricos – disse o primeiro barão dos tijucos – sem os pobres..." No que o outro barão das várzeas concordou, tacitamente, sem comentário com riso cínico estampado da cara gorda.
Ora, aquilo caiu como uma bomba em meio à "turma da Poronga"! Pra quem não sabe, "poronga" é a lamparina de querosene que seringueiro leva madrugada adentro na floresta escura para "tirar" seringa (extrair o látex). Era tão óbvia a diferença de classes na vila ribeirinha que causava espanto a gente não tivesse antes percebido o abismo do Fim do Mundo... Então, por acaso, minha avó deu-me a ler o romance "Marajó" escrito por tio ausente no Rio de Janeiro cujo nome fora marcado no catecismo do arcebispo do Pará, Dom Mário de Miranda Vilas-Boas, como prejudicial aos católicos.
A estória para o moço da Poronga foi história pura! Pois o sítio da tia ficava justamente no rio do romance e quando a velha contava era, paresque, a versão original do tio Dalcídio... Diacho! O "Marajó" completou 70 anos desde a escrita em Salvaterra e minha “derradeira” quixotada (campanha pela reconstrução da Casa de Dalcidio Jurandir e reestruturação do Museu do Marajó) é a conclusão daqueles dias da "turma da Poronga".
Moral da história: que seria dos ricos se não fossem os pobres aguentar a retranca? Espanta haver tanta riqueza para aliviar a pobreza mais cruel e os ricos ser acometidos de mania de suicídio coletivo transformando pobres distraídos na margem da história em miseráveis desesperados. Se Freud não explica, Marx todavia avisou.
* José Varella é de Belém-PA (1937), autor dos ensaios "Novíssima Viagem Filosófica", "Amazônia Latina e a terra sem mal" e "Breve história da gente marajoara.
Nenhum comentário:
Postar um comentário