Crônica de Luiz Fernando Verríssimo à alguns anos atrás...
Uma vez, numa reunião de escritores em Sydney, ouvi um poeta aborígene começar a contar um evento ocorrido na sua tribo numa certa data "BC"... e interromper-se para explicar aos estrangeiros que para os aborígenes "BC" não queria dizer "Before Christ", antes de Cristo, mas "Before Cook", ou antes do capitão James Cook, que ao tomar posse da Austrália em nome do rei Jorge III da Inglaterra, em 1770, mudou a vida deles para sempre. Era uma brincadeira, mas com uma verdade embutida: a cronologia de povos nativos não coincide com a cronologia imposta pelos seus colonizadores. O Novo Mundo, por exemplo, só era novo para os europeus do século 61. Já havia gente e velhas civilizações por aqui "AC": não Antes de Cristo mas Antes de Colombo, Cabral ou Cortez.
Várias categorias humanas têm o equivalente à dicotomia Cristo e Cook do poeta, ou divisões diferentes da sua história de acordo com suas peculiaridades, tradições e pontos de vista. Sem falar, claro, nas religiões cujos mitos inaugurais têm outros nomes, como Maomé ou Abraão. Assim tanto a psicologia quanto o capitalismo têm suas eras AF e DF (Antes e Depois de Freud, Antes e Depois de Ford), no mundo da eletrônica AC e DC querem dizer Antes e Depois do Chip e todos os anos da nossa atualidade recente deveriam ser seguidos das letras AD, significando não "Anno Domini", mas "Ano Digital". Pois a chegada do código binário certamente modificou a vida de todo o mundo tanto quanto a chegada do Capitão Cook modificou a vida dos aborígenes da Austrália.
Outro exemplo: a história do cinema moderno, PS (Pós Som), se subdivide em AJLG e DJLG, ou Antes de Jean-Luc Godard e Depois de Jean-Luc Godard. Com um só filme, Acossado (À Bout de Souffle), de 1960, Godard acabou com todas as convenções da montagem cinematográfica e mudou a gramática do cinema para sempre. Tanto que, hoje, novidade é alguém usar os recursos que Godard desprezou. "Dissolves", "fade outs" e "fade ins" para sinalizar a passagem de tempo, aquelas coisas. (Porque, com o tempo, nada fica tão revolucionário quanto o acadêmico). Enquanto reinventava o cinema, Godard aproveitou e inaugurou os anos 60. De certa maneira, toda a história cultural do nosso tempo pode ser dividida em AJLG e DJLG.
Que outra figura foi o Cristo ou o Cook de qual forma de arte? Na música, Antes e Depois de Beethoven ou Antes e Depois de Stravinski? Na filosofia, Antes e Depois de Nietzsche? E na política brasileira, essa arte de tão poucos talentos? Antes e Depois de Getúlio Vargas, certo. Ninguém como ele mudou os rumos da República tão drasticamente. No futuro se falará num Brasil AL e DL? Difícil dizer. Por enquanto, Lula não parece disposto a ser o mito inaugural de nada muito diferente.
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