Há mais de quinze anos falamos de cinema digital, de barateamento de custos e das novas possibilidades criativas com essas tecnologias. Entretanto, é nos anos recentes que temos visto a efetiva mudança qualitativa e quantitativa da produção audiovisual baseada em plataformas digitais. A atual produção no Brasil tem uma cara que há dez anos não existia. Em importantes festivais de cinema, no Youtube e sites do gênero, em coletivos de criação, grupos de críticos curadores online e em escolas populares; o que vemos é uma multidão de jovens produzindo e criando com imagens e sons, forjando experiências estéticas e subjetivas inovadoras sem dinheiro incentivado direto.
O mais recente Festival de Tiradentes, por exemplo, foi vencido pelo longa-metragem Viagem a Ythaca, de Ricardo e Luiz Pretti, Pedro Diógenes e Guto Parente, realizado sem recursos públicos. No Festival Cine Esquema Novo, em Porto Alegre, o melhor curta-metragem foi “Sweet Karolynne”, de Ana Bárbara Ramos (PB) também realizado sem incentivo público. Os coletivos Teia em Belo Horizonte e Alumbramento em Fortaleza mudaram a cara do cinema feito nessas cidades com muitos filmes feitos também sem incentivo público. Em relação à crítica, as mais importantes revistas do país, como Cinética e Contracampo, existem sem incentivo financeiro ou publicidade. Devemos lembrar ainda a existência de uma enorme produção feita em escolas populares como Nós do Morro, Observatório de Favelas, Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu, isso para ficarmos apenas no Rio de Janeiro.
Diante desse quadro, que poderia se estender por algumas páginas, o que se coloca para as políticas públicas é a possibilidade de incentivar o audiovisual liberando essas potências de vida e de criação que refletem e inventam com imagens. Com poucos recursos, o panorama acima descrito pode se espalhar por muitas outras cidades, grupos e pessoas. Certamente que isso não significa que os filmes não precisem de leis de incentivo nos moldes tradicionais, mas existem hoje outras formas de se produzir audiovisual que não podem ser negligenciadas. Nesse sentido, o que está colocado é a necessidade de uma mudança de paradigma no que tange ao incentivo à produção. É urgente que pensemos em financiar pessoas e não filmes, apenas.
Foi com este intuito que no mais recente Forcine (Fórum Brasileiro de Ensino de Cinema e Audiovisual), que aconteceu em março de 2010 na UFF (Universidade Federal Fluminense), foi acolhida a proposta de uma renda mínima para estudantes egressos de escolas de cinema e audiovisual. Neste breve artigo desenvolvo a proposta, exponho alguns pontos que a contextualizam e justifico a sugestão.
1 – A popularização dos meios faz com que jovens universitários tenham seus pequenos computadores e acesso os equipamentos necessários para edição de imagem e som. Frequentemente, isso é também verdade para as câmeras e microfones. Além do barateamento dos equipamentos pessoais, existe hoje uma importante capacidade instalada de produção audiovisual ligada às escolas, ONGs, Núcleos de Produção Digital, universidades, etc. Trata-se de ilhas de edição, câmeras e equipamentos de captação de som. Em suma, o básico necessário para a realização de obras a baixo custo.
2 – A exibição, sem fins lucrativos, é garantida em festivais quase diários, Internet, TVs universitárias e públicas, cineclubes e programas de difusão, como a Programadora Brasil. Contabilizar o público do cinema brasileiro hoje pelo número de ingressos vendidos em sala só interessa aos poderes que nenhum interesse têm pela diversidade ou pela existência de um cinema nacional.
3 – Se a cultura é o paradigma do trabalho imaterial, a precariedade, que sempre foi parte do trabalho dos indivíduos ligados à cultura, foi radicalmente reforçada na atual fase do capitalismo e das mudanças tecnológicas ligadas ao mundo do audiovisual e da comunicação. As escolas de cinema não podem ter como paradigma o emprego ou os filmes feitos com milhões de reais. Esses filmes são importantes, mas não sustentam as possibilidades de criação dos jovens que saem das escolas hoje. Também o cinema é pós-industrial e nós, formadores, devemos estar atentos a isso. Precisamos pensar em condições de trabalho em uma sociedade sem emprego. Trata-se de outro tipo de inclusão.
4 – O que leva muitos jovens a pararem de produzir quando saem das escolas e universidades é a necessidade de ganhar mil ou dois mil reais mensais, e não a impossibilidade de terem seus filmes patrocinados. Os filmes deixam de ser feitos pela necessidade de arranjar um emprego, frequentemente distante do cinema e da criação, distante daquilo para o qual foram formados. Trata-se de uma questão democrática, trata-se de aproveitar o investimento que já foi feito na formação desses jovens. Hoje, apenas os jovens de elite têm condições de se sustentar e aproveitar todas as possibilidades de criação que estão dadas no campo do audiovisual contemporâneo. O que é comum tem acesso restrito. Se estivermos de acordo que a tarefa do estado é possibilitar a existência de um cinema nacional, importante não apenas como commodity, mas como criação singular e democrática, entendemos também que, para chegar com mais eficiência a este fim, são as pessoas que devem ser patrocinadas também.
6 – Financiar as vidas de criadores de cinema e audiovisual significa, além disto, perder o controle em relação ao que será criado. Trata-se de uma lógica distante da dos editais de fomento. Um fomento direto às vidas descentraliza o dinheiro e os modos de criação. O que aparecerá de uma iniciativa como esta não pode ser previsto ou antecipado, eis o lugar da criação.
Alguns números
Se a cada ano forem oferecidas mil bolsas mensais de 1.500 reais para jovens que produzem ligados ao audiovisual; escrevendo, realizando, fotografando e experimentando, durante um ano chegaremos ao valor total de R$ 18.000.000,00 para a totalidade das bolsas.
Uma radicalização democrática, um deslocamento conceitual e um ganho em qualidade e quantidade no audiovisual brasileiro custa o equivalente a dois longas brasileiros de grande orçamento!
Propostas de operação
1 – Os jovens concorreriam a bolsas apresentando a produção dos anos em que estavam na universidade. Não se trata de apresentar projetos a serem realizados, mas garantir a continuidade de seus trabalhos nos dois primeiros anos após a formatura. Esta produção pode ser bastante diversa e contemplar um largo espectro de pessoas ligadas ao cinema e o audiovisual; críticos, técnicos de som, diretores, fotógrafos, diretores de arte, curadores, etc.
2 – As universidades, junto às agências de fomento, poderiam gerenciar essa seleção, acompanhar os resultados e produzir as necessárias avaliações. Poderiam ainda analisar as escolas de cinema não universitárias e a possibilidade de seus alunos se apresentarem como proponentes.
3 – As bolsas poderiam ser concedidas em regime de dezoito meses, com renovação depois dos nove primeiros meses. Ao trabalho.
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