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Antes de pedalar pelas ruas de Amsterdã com uma bicicleta vermelha e um 
sorriso largo, como fez na tarde da quarta-feira da semana passada, 
Ícaro Luís Vidal dos Santos, 25 anos, percorreu um caminho duro, mas que
 poderia ter sido bem mais tortuoso. Talvez instransponível. Ele foi o 
primeiro cotista negro a entrar na Faculdade de Medicina da Federal da 
Bahia. Formando da turma de 2011, Ícaro trabalha como clínico geral em 
um hospital de Salvador. A foto ao lado celebra a alegria de alguém que 
tinha tudo para não estar ali. É que, no Brasil, a cor da pele determina
 as chances de uma pessoa chegar à universidade. Para pobres e alunos de
 escolas públicas, também são poucas as rotas disponíveis. Como tantos 
outros, Ícaro reúne várias barreiras numa só pessoa: sempre frequentou 
colégio gratuito, sempre foi pobre – e é negro. Mesmo assim, sua 
história é diferente. Contra todas as probabilidades, tornou-se doutor 
diplomado, com dinheiro suficiente para cruzar o Atlântico e saborear a 
primeira viagem internacional. Sem a política de cotas, ele teria 
passado os últimos dias pedalando nas pontes erguidas sobre os canais de
 Amsterdã? Impossível dizer com certeza, mas a resposta lógica seria 
“não”.
  
Desde que o primeiro aluno negro ingressou em uma universidade pública 
pelo sistema de cotas, há dez anos, muita bobagem foi dita por aí. Os 
críticos ferozes afirmaram que o modelo rebaixaria o  nível educacional e
 degradaria as universidades. Eles também disseram que os cotistas 
jamais acompanhariam o ritmo de seus colegas mais iluminados e isso 
resultaria na desistência dos negros e pobres beneficiados pelos 
programas de inclusão. Os arautos do pessimismo profetizaram 
discrepâncias do próprio vestibular, pois os cotistas seriam aprovados 
com notas vexatórias se comparadas com o desempenho da turma considerada
 mais capaz. Para os apocalípticos, o sistema de cotas culminaria numa 
decrepitude completa: o ódio racial seria instalado nas salas de aula 
universitárias, enquanto negros e brancos construiriam muros imaginários
 entre si. A segregação venceria e a mediocridade dos cotistas acabaria 
de vez com o mundo acadêmico brasileiro. Mas, surpresa: nada disso 
aconteceu. Um por um, todos os argumentos foram derrotados pela simples 
constatação da realidade. “Até agora, nenhuma das justificativas das 
pessoas contrárias às cotas se mostrou verdadeira”, diz Ricardo 
Vieiralves de Castro, reitor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
 (Uerj).
As cotas raciais deram certo porque seus beneficiados são, sim, 
competentes. Merecem, sim, frequentar uma universidade pública e de 
qualidade. No vestibular, que é o princípio de tudo, os cotistas estão 
só um pouco atrás. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota
 de corte para os candidatos convencionais a vagas de medicina nas 
federais foi de 787,56 pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos. A
 diferença entre eles, portanto, ficou próxima de 3%. ISTOÉ entrevistou 
educadores e todos disseram que essa distância é mais do que razoável. 
Na verdade, é quase nada. Se em uma disciplina tão concorrida quanto 
medicina um coeficiente de apenas 3% separa os privilegiados, que 
estudaram em colégios privados, dos negros e pobres, que frequentaram 
escolas públicas, então é justo supor que a diferença mínima pode, 
perfeitamente, ser igualada ou superada no decorrer dos cursos. Depende 
só da disposição do aluno. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro 
(UFRJ), uma das mais conceituadas do País, os resultados do último 
vestibular surpreenderam. “A maior diferença entre as notas de ingresso 
de cotistas e não cotistas foi observada no curso de economia”, diz 
Ângela Rocha, pró-reitora da UFRJ. “Mesmo assim, essa distância foi de 
11%, o que, estatisticamente, não é significativo.”
Por ser recente, o sistema de cotas para negros carece de estudos que 
reúnam dados gerais do conjunto de universidades brasileiras. Mesmo 
analisados separadamente, eles trazem respostas extraordinárias. É de se
 imaginar que os alunos oriundos de colégios privados tenham, na 
universidade, desempenho muito acima de seus pares cotistas. Afinal, 
eles tiveram uma educação exemplar, amparada em mensalidades que custam 
pequenas fortunas. Mas a esperada superioridade estudantil dos não 
cotistas está longe de ser verdade. A Uerj analisou as notas de seus 
alunos durante 5 anos. Os negros tiraram, em média, 6,41. Já os não 
cotistas marcaram 6,37 pontos. Caso isolado? De jeito nenhum. Na 
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que também é referência no 
País, uma pesquisa demonstrou que, em 33 dos 64 cursos analisados, os 
alunos que ingressaram na universidade por meio de um sistema parecido 
com as cotas tiveram performance melhor do que os não beneficiados. E 
ninguém está falando aqui de disciplinas sem prestígio. Em engenharia de
 computação, uma das novas fronteiras do mercado de trabalho, os 
estudantes negros, pobres e que frequentaram escolas públicas tiraram, 
no terceiro semestre, média de 6,8, contra 6,1 dos demais. Em física, um
 bicho de sete cabeças para a maioria das pessoas, o primeiro grupo 
cravou 5,4 pontos, mais dos que os 4,1 dos outros (o que dá uma 
diferença espantosa de 32%).
Em um relatório interno, a Unicamp avaliou que seu programa para pobres e
 negros resultou em um bônus inesperado. “Além de promover a inclusão 
social e étnica, obtivemos um ganho acadêmico”, diz o texto. Ora, os 
pessimistas não diziam que os alunos favorecidos pelas cotas acabariam 
com a meritocracia? Não afirmavam que a qualidade das universidades 
seria colocada em xeque? Por uma sublime ironia, foi o inverso que 
aconteceu. E se a diferença entre cotistas e não cotistas fosse 
realmente grande, significaria que os programas de inclusão estariam 
condenados ao fracasso? Esse tipo de análise é igualmente discutível. 
“Em um País tão desigual quanto o Brasil, falar em meritocracia não faz 
sentido”, diz Nelson Inocêncio, coordenador do núcleo de estudos 
afrobrasileiros da UnB. “Com as cotas, não é o mérito que se deve 
discutir, mas, sim, a questão da oportunidade.” Ricardo Vieiralves de 
Castro fala do dever intrínseco das universidades em, afinal, 
transformar  seus alunos – mesmo que cheguem à sala de aula com 
deficiências de aprendizado. “Se você não acredita que a educação é um 
processo modificador e civilizatório, que o conhecimento é capaz de 
provocar grandes mudanças, não faz sentido existir professores.” Não faz
 sentido existir nem sequer universidade.
Mas o que explica o desempenho estudantil eficiente dos cotistas? “Os 
alunos do modelo de inclusão são sobreviventes, aqueles que sempre foram
 os melhores de sua turma”, diz Maurício Kleinke, coordenador-executivo 
do vestibular da Unicamp. Kleinke faz uma análise interessante do 
fenômeno. “Eles querem, acima de tudo, mostrar para os outros que são 
capazes e, por isso, se esforçam mais.” Segundo o professor da Unicamp, 
os mais favorecidos sabem que, se tudo der errado na universidade, podem
 simplesmente deixar o curso e voltar para os braços firmes e seguros de
 seus pais. Para os negros e pobres, é diferente. “Eles não sofrem da 
crise existencial que afeta muitos alunos universitários e que faz com 
que estes desistam do curso para tentar qualquer outra coisa.” Advogado 
que entrou na PUC do Rio por meio de um sistema de cotas, Renato 
Ferreira dos Santos concorda com essa teoria. “Nós, negros, não podemos 
fazer corpo mole na universidade”, diz. Também professor do departamento
 de psicologia da Uerj, Ricardo Vieiralves de Castro vai além. “Há um 
esforço diferenciado do aluno cotista, que agarra essa oportunidade como
 uma chance de vida”, diz o educador. “Ele faz um esforço pessoal de 
superação.” Esse empenho, diz o especialista, é detectável a cada 
período estudantil. “O cotista começa a universidade com uma performance
 mediana, mas depois se iguala ao não cotista e, por fim, o supera em 
muitos casos.”
O cotista não desiste. Se desistir, terá de voltar ao passado e 
enfrentar a falta de oportunidades que a vida ofereceu. Por isso, os 
índices de evasão dos alunos dos programas de inclusão são baixos e, em 
diversas universidades, até inferiores aos dos não cotistas. Para os 
críticos teimosos, que achavam que as cotas não teriam efeito positivo, o
 que se observa é a inserção maior de negros no mercado de trabalho. 
“Fizemos uma avaliação com 500 cotistas e descobrimos que 91% deles 
estão empregados em diversas carreiras, até naquelas que têm mais 
dificuldade para empregar”, diz Ricardo Vieiralves de Castro. Com o 
diploma em mãos, os negros alcançam postos de melhor remuneração, o que,
 por sua vez, significa uma chance de transformação para o seu grupo 
social. Não é difícil imaginar como os filhos dos cotistas terão uma 
vida mais confortável – e de mais oportunidades – do que seus pais 
jamais tiveram.
Por mais que os críticos gritem contra o sistema de cotas, a realidade 
nua e crua é que ele tem gerado uma série de efeitos positivos. Hoje, os
 negros estão mais presentes no ambiente universitário. Há 15 anos, 
apenas 2% deles tinham ensino superior concluído. Hoje, o índice 
triplicou para 6%. Ou seja: até outro dia, as salas de aula das 
universidades brasileiras lembravam mais a Suécia do que o próprio 
Brasil. Apesar da evolução, o percentual é ridículo. Afinal de contas, 
praticamente a metade dos brasileiros é negra ou parda. Nos Estados 
Unidos, a porcentagem da população chamada afrodescendente corresponde 
exatamente à participação dela nas universidades: 13%. Quem diz que não 
existe racismo no Brasil está enganado ou fala isso de má-fé. Nos 
Estados Unidos, veem-se negros ocupando o mesmo espaço dos brancos – nos
 shoppings, nos restaurantes bacanas, no aeroporto, na televisão, nos 
cargos de chefia. No Brasil, a classe média branca raramente convive com
 pessoas de uma cor de pele diferente da sua e talvez isso explique por 
que muita gente refuta os programas de cotas raciais. No fundo, o que 
muitos brancos temem é que os negros ocupem o seu lugar ou o de seus 
filhos na universidade. Não há outra palavra para expressar isso a não 
ser racismo.
Com a aprovação recente, pelo Senado, do projeto que regulamenta o 
sistema de cotas nas universidades federais (e que prevê que até 2016 
25% do total de vagas seja destinado aos estudantes negros), as próximas
 gerações vão conhecer uma transformação ainda mais profunda. Os negros 
terão, enfim, as condições ideais para anular os impedimentos que há 205
 anos, desde a fundação da primeira faculdade brasileira, os afastavam 
do ensino superior. Por mais que os críticos se assustem com essa 
mudança, ela é justa por fazer uma devida reparação. “São muitos anos de
 escravidão para poucos anos de cotas”, diz o pedagogo Jorge Alberto 
Saboya, que fez sua tese de doutorado sobre o sistema de inclusão no 
ensino superior. Acima de tudo, são muitos anos de preconceito. Como se 
elimina isso? “Não se combate o racismo com palavras”, diz o sociólogo 
Muniz Sodré, pesquisador da UFRJ. “O que combate o racismo é a 
proximidade entre as diferenças.” Não é a proximidade entre as 
diferenças o que, afinal, promove o sistema de cotas brasileiro?
Fotos: Arquivo pessoal; Adriano Machado/Ag. Istoé; Ana Carolina Fernandes; Orestes Locatel; Link Photodesign








 
 
 
 
 
 
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