segunda-feira, julho 19, 2010

Bêbado no Outeiro e Salinas: A mesma ressaca?!

Linkado aqui ao lado na área por mim chamada Não deixo de Ler, o blog do Jornalista Pedreirense que atende pelo twitter como @Andersonjor, Bêbado Gonzo me traz sempre uma rizada com gostinho de crítica social. Especial para quem gosta! De lá, pincei uma postagem que compara Salinas, ou melhor a praia do Atalaia com a praia grande de Outeiro (p/ íntimos), ilha de Caratareua para os pesquisadores, em Belém do Pará, relatada pela visão de um jovem lembrando com saudosismo do tempo em que não haviam carros-trio-elétricos e outras coizitas ingratas que esta geração que nos atormenta. Curta! Pra Outeiro no Chevette Azul

Mil sentarão do teu lado com farofa e frango assado e dez mil a tua direita ouvirão o tecnomelody e tu serás atingido, sim, pela bola que o grupo de solteiros e casados do piquenique está jogando no areião da Praia Grande. Não, não é nenhum salmo de uma seita demoníaca. É apenas a dura realidade de quem busca um lugar ao sol no que era para ser nosso recanto de águas doces e areias finíssimas, porém virou uma piada de extremo mau gosto separada da península de Belém por uma ponte e um acúmulo imenso de descaso e ignorância.
A imagem dos farofeiros, dos moleques com cabelo tingido de loiro e ouvintes das aparelhagens, do medo de arrastão e dos assaltos – agora inclusive com reféns – não faz parte da memória que tenho de Outeiro. É certo que os domingos na ilha são o pavor há muitos anos devido à facilidade e ao custo baixo para chegar ao distrito. Qualquer quatro contos garantem a ida e volta, sobrando troco para um picolé. Porém nem nos mais claustrofóbicos dias das minhas reminiscências aquele pedaço de terra se comparava a sucursal do inferno que é hoje.
Praia Grande, em Outeiro, em dias tranquilos.
Se você espera mais piadas sobre os atuais frequentadores de Outeiro, melhor parar por aqui. Vá arrumar suas malas e partir para Salinas onde não há praias lotadas, as pessoas são educadas, não há lixo na areia, tampouco carros com aparelhos de sons despejando excremento pelos alto-falantes. Aproveite e passe naquelas barracas em que vendem um peixe tão bem servido que um prato dá para alimentar seis pessoas e custa nada mais do que R$ 5. Esse lugar é o paraíso, não é mesmo?
No Outeiro da minha memória, tem um gordo de braço peludo no volante de um Chevette S/L azul, modelo 1989. No banco do carona, uma morena bonita de cabelos lisos, quase uma índia, diligente com as brigas da molecada que ia no banco de trás. E a viagem até a praia demorava horas, com direito a passar pela fábrica da Tramontina e ouvir minha irmã perguntar inocente: “papai, por que tem esse cheiro? É uma fábrica de merda?”. O odor dos cabos de madeira das facas sendo secados domina ainda a atmosfera do distrito. Não sei ainda se confunde as crianças de hoje, tão acostumadas a cheiros piores.
O gordo é meu pai, que continua pançudo, embora os pelos do braço estejam meio esbranquiçados. Nunca levava a gente aos domingos, porque mourejava de sol a sol, de domingo a domingo, mas tirava um tempo entre quartas e sextas e íamos felizes para esses passeios memoráveis.
Descíamos nós três, minhas duas irmãs e eu, em uma praia quase vazia, em qualquer época do ano, menos em julho, porque meu pai sabia do sofrimento que já atingia a praia dos pobres nesse mês de férias. Praia superlotada, riscos de brigas, muitos bêbados. Bons tempos em que os perigos eram esses para um pai preocupado. Outeiro era nossa e, às vezes, calhava de ir junto amigos da família com suas respectivas crianças, o que era bom também, embora eu sempre ficasse meio de lado, sentado olhando as águas do rio numa liga meio “Vento no litoral”, do Renato Russo, que na época nem tinha morrido ainda. Não me lembro de música em volume ensurdecedor nas velhas barracas de comida e venda de cerveja que ainda estão lá, na Praia Grande e na Praia do Amor, que é a mais bonita inclusive. Deve ser por causa do nome.
Um Chevettão como o nosso querido "Chevelho".
Como o pai não tinha tempo aos domingos, minha mãe inventou um passeio para lá, justamente no primeiro dia da semana e, em julho. E, claro, crianças não estão nem aí para sufoco ou qualquer coisa que atrapalhe a diversão. Pegamos o bonde, em São Brás, e partimos, porque ela não dirigia e muito menos tinha carro. Ainda assim não me lembro do desespero para sentar no coletivo, das hordas ávidas por diversão, de ter medo de estar ali. Talvez eu não percebesse essas coisas e elas estivessem no meu nariz. Talvez não existissem mesmo naquele tempo. Não posso explicar ao certo, afinal, era apenas um menino.
Ao que me parece, a ansiedade do verão era menor e bem menos visível a necessidade de ostentar um bronzeado, de pertencer a esse mundo de não sei quantas mil pessoas saindo para os balneários no fim de semana, como alardeiam os jornais, em somas duvidosas e pouco confiáveis. O contraste mais visível hoje nas areias é a predominância de gente mais jovem em detrimento das famílias.
São os solteiros buscando se adequar, ter história para contar sobre esse período fantasioso e enganador chamado férias. Não, não vou falar dos cabelos com luzes, das roupas falsificadas de marcas famosas nem da bebida barata que eles bebem. Afinal, o que isso tem de diferente dos carrões, dos óculos de grife e do uísque 12 anos bebidos Al Mare? Ok, o valor, mas o objetivo é o mesmo. De fato, são apenas modelos sendo copiados em escala e forma diferentes. Uma Outeiro querendo ser a Salinas dos pobres, enquanto a original faz de tudo para parecer o menos possível com sua cópia suburbana. Sem conseguir de todo, por sinal.
Praia do Atalaia também conhecida como Praia dos Transformers ou Outeiro dos Playbas. (Adoro essa imagem)
A população mais pé-rapada crescente da metrópole tem tomado cada vez mais a ilha distrital, que na época do Chevette S/L 89 já carecia de estrutura. Associe aí a falta de investimentos públicos e a correria da multidão para este lugar, com gente louca para copiar os padrões de Salinópolis, de consumo, de postura, de relação com o ambiente. Assim fica fácil entender como a classe A e B se assemelham à classe C, D e E: justamente na ausência de civilidade de lixo na areia, de poluição sonora, de falta de respeito com o próximo e pelo medo da criminalidade e violência. Itens cada vez mais democráticos nestes verões de agora.
Não quero aqui sofrer com a morte da Outeiro de outrora, da aurora da minha vida, da minha infância querida que os tempos não trazem mais. Mas é possível hoje ter uma praia decente a meia hora de casa, sem lixo, com estabelecimentos decentes para comer e beber, sem medo de ser roubado ou atingido por uma garrafada ou uma bala ou ainda virar refém de assalto. Transporte adequado, segurança, saúde, essas pequenas coisas que são tão pequenas, mas que aqui parecem sonhos impossíveis, sobretudo, para quem não tem grana para fugir para mais longe a caminho do sol. Temo que, em alguns anos, não haja ninguém para contar que tem saudade de Outeiro e as lembranças sejam de fato uma piada bíblica sobre o juízo final.

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