Por Marcelo Bastos*
A
questão cultural sempre assume proporções maiores e levam mais tempo para serem
assimiladas no cotidiano, não se pode impedir um curso de rio sem planejamento,
recursos e destruição do meio ambiente, da mesma forma o processo de construção
cultural se dá pela impulsão progressiva de diferentes fatores, mas dada as
circunstâncias os fatores que certamente influenciam a retirada do carnaval do
centro histórico de Belém trás em seu cerne o preconceito racial, o revanchismo
contra a cultura popular e pior, se é que é possível, uma intricada e velada
luta de classes, que não admite compartilhar suas ruas, seus valores com a
invasão de “bárbaros em alegria”.
Deve-se
compreender que isso não é uma exclusividade dos abastados do centro velho da cidade
de Belém, não vem de muito tempo antes, mesmo do Brasil Império, mesmo durante
a construção histórica do carnaval, o que se via de um lado eram fantasias,
alegorias e batalhas de confetes compunham os desfiles das luxuosas sociedades
carnavalescas do começo do século XX. Muita coisa vinha diretamente de Paris e
era rapidamente consumida por quem tinha dinheiro suficiente para frequentar as
lojas sofisticadas da rua do Ouvidor. Colombinas, arlequins e pierrôs pareciam
ter expulsado da festa os antigos mascarados, diabinhos, dominós, caveiras e
zé-pereiras (grupo de foliões tocando bumbos e outros instrumentos), que saíam
às ruas nos dias de Entrudo.
Do
outro lado, sempre que o mês de fevereiro se aproximava, a expectativa pelo
Carnaval dividia espaço com as críticas ao Entrudo. Entrudo era a brincadeira com
água, farinha e máscaras que desde o tempo da colônia garantia a diversão dos
foliões. Primitivo, inconveniente, pernicioso e selvagem eram alguns dos
adjetivos usados pela imprensa, por políticos e intelectuais para defini-lo.
Tal incômodo com o jogo da molhação se explicava pelo risco de que os
“moleques”, a “ralé”, o “zé-povinho”, termos que designavam negros e pobres,
extrapolassem os limites da brincadeira e se julgassem em pé de igualdade com
os senhores, damas e senhoritas brancas.
Nesse
período o processo de formação do povo brasileiro ainda estava em pleno
processo de miscigenação, a senzala ainda era uma realidade, vista a olhos nus,
negros, mulatos e índios não eram ditos como cidadãos, aliais nem o conceito de
cidadania era definido como é nos dias de hoje, e as leis nem de longe se
assemelhavam como as que hoje temos, á época circulares, decretos administrativos
e punições, como multas e prisões, passavam a tratar especificamente dos
mecanismos para reprimi-lo. Todo esse aparato legal foi mobilizado para
convencer os festeiros a abandonar aquela forma de diversão.
Bem
sabemos que o Carnaval brasileiro não se tornou a cópia da sua matriz europeia.
De fato a influência europeia estava longe de ser suficiente para suprimir
expressões das tradições negras que o Carnaval trazia a público. Mesmo no Rio
de Janeiro, onde a vigilância e a repressão eram mais ostensivas, os ranchos,
que surgiram nos fins do século XIX, e os cordões, que há muito comandavam a
farra, garantiam o grande público. Rancho é como se denominavam os grupos de
festeiros que, reeditando um costume português, se apresentavam durante as
celebrações católicas, especialmente o Natal e a festa de Reis. Eles
representavam os pastores em viagem a Belém para visitar o menino Jesus. Eram
grupos que iam de casa em casa cantando e cumprimentando os moradores. No
Nordeste e no Pará os ranchos também são chamados de reisados e, os que mais se
destacam, ostentam uma variedade de vestimentas e adornos.
Leopoldo
Nogueira Santana Jr., em sua dissertação de Mestrado para a UEPA, em 2008,
intitulada “Quem é do Rancho tem amor e não se amofina: saberes e cultura
amazônicos presentes nos sambas-enredos da Escola de Samba Rancho Não Posso Me
Amofiná”, trás uma importante contribuição para o entendimento de nosso
carnaval, para o autor no Pará “o entrudo foi trazido pelos colonizadores
portugueses, repetiam-se na região as práticas vividas no restante do país,
como arremesso de líquidos entre os foliões, duelos que incluíam desde água
perfumada a misturas mal cheirosas transportadas nos mais diversos tipos de
recipientes. As autoridades eclesiásticas consideravam essas atitudes como
“grotescas”, “absurdas”, e de “mau gosto”. Logo trataram de condenar tais atos,
que, segundo os religiosos, invadiam o tempo da Quaresma, ações passivas de
penitências para religiosos envolvidos em tais manifestações”.
O
que se percebe ao estudar mais aprofundamente o tema percebe-se que está em
jogo quando se decidi não mais ter o carnaval na Cidade velha é apenas o
deslocamento de uma antiga luta, entre aqueles que queriam um carnaval de luxo,
onde apenas pares se encontram em bailes com máscaras e um ordem respeitável
aos padrões do status quo vigente, e do outro lado os foliões negros, mulatos,
homens e mulheres, que brincam o carnaval com liberdade, onde expressam
livremente seus posicionamentos políticos, com críticas aos governantes e as
mazelas sociais.
O
carnaval de rua na Cidade Velha é a expressa anárquica e brilhante de uma parcela
que não se dobrou aos ditames da cultura hegemônica dos abastados, mas sim se
rebelam e usam o carnaval para canalizar sua rebeldia, suas críticas, as vezes
acidas por demasia, inebriam com liberdade e democracia que participa do
carnaval de rua.
Pensando
bem sabe o que não mudou, a reclamação continua a mesma, o fedor, seja dos
tempos do Entrudo, quando reclamavam das misturas mal cheirosas transportadas
nos mais diversos tipos de recipientes, ou de hoje quando reclamam da urina,
que a chuva de toda tarde leva para o rio, que como é biodegradável não afeta o
meio ambiente.
O
que afeta mesmo é a alegria anárquica do folião do centro histórico de Belém,
transgredindo assim as normas cultas de civilidade europeia, mas nosso carnaval
sempre foi de resistência, devemos manter nossa tradição de luta e assim, nesse
ano, vamos ter um dos melhores carnavais dos últimos tempos, por que quem
estará lá brincando o carnaval será herdeiro dos anos de luta contra o
preconceito, será herdeiro de uma força maior que move as os foliões, pois as
paixões, a justiça social e luta por um mundo melhor encontra eco no carnaval
de rua, brincado nas mesmas ruas que nossos ancestrais, que foram presos,
martirizados, penalizados por querer apenas se distrair e brincar sua cultura imortal.
Viva
a cultura do carnaval de rua!
Viva
a alegria anárquica e democrática dos foliões!
Marcelo
Bastos assina o blog Dilacerado.
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