A notícia do dia foi que a presidente Dilma Rousseff vetou a proposta apresentada pelo PSOL para que fosse realizada uma auditoria da dívida pública federal, com a participação de entidades da sociedade civil. Só que muita gente acaba reproduzindo o que a mídia e a oposição dizem e escondem o que significa os termos que fazem parte deste debate que poucos conhecem a fundo ou sabem explicá-lo para a população.
Via Samba do Avião, sob o título "Os vendilhões da indignação".
Somos um país, talvez um planeta de indignados. "É um absurdo" é das frases mais comuns; uma charge argentina de alguns anos atrás mostrava um casal: um lendo alto no jornal sobre o cometa Shoemaker-Levy, que explodiria sobre Júpiter com a força de dez mil bombas atômicas. O outro responde: "Absurdo! Cadê o governo que não faz nada!?" Alguém dirá que é melhor do que o conformismo, mas essa indignação fácil não é ativa, não é direcionada. Não é, em outras palavras, em nada diferente do conformismo. E é vendida, ativamente, o tempo todo, além de ser reforçada "digrátish" pela internet. Dois exemplos brasileiros:
A) Como a tragédia teve repercussão nacional e S. Luís do Paraitinga é minúscula, as roupas foram em quantidade muito maior do que a suficiente para cada morador de lá ter um closet maior do que o da Angela Merkel.
B) As roupas em excesso, após a distribuição, foram endereçadas a vários galpões de empresários que se voluntariaram para encaminhá-las a entidades assistenciais em outras plagas.
C) O galpão em que as roupas apodreciam encaminhou a roupa que estava em boas condições para uma entidade de Campinas, e não conseguiu foi achar jeito hábil de se livrar das roupas já rotas, sujas, ou já mofadas.
Em resumo, é uma não-notícia. Talvez pudesse ser notícia "parte das roupas doadas a S. Luís do Paraitinga estava em mal estado." Mas é claro que isso não alcançaria a indignação fácil no mesmo nível da sugestão de que roupas doadas mofaram ao invés de ser entregues a seus destinatários de direito, reforçando a percepção de corrupção generalizada e que, por sua própria onipresença, leva ao desânimo, não à ação. (A Folha não menciona, por supuesto, nessa ação de desinformação, o partido da prefeita de SLP. Ganha um bico esponjoso e colorido quem adivinhar.)
Na outra ponta do espectro político, uma imagem recorrente nas correntes de email, facebook ou twitter da esquerda brasileira é esta aqui:
Olhem que estarrecedor! Quase a metade do orçamento brasileiro vai para o pagamento dos juros da dívida - ok, e amortizações, que devem ser outra variedade de juros em tecniquês. De qualquer jeito, é evidente que o governo títere dos bancos, se quisesse, poderia declarar a moratória, ou a redução dos juros, e incontinenti sobraria dinheiro para saúde, educação, e tudo o mais.
Pois bem, a imagem mente que nem uma matéria da Folha sobre São Luís do Paraitinga. "Amortizações" se refere à rolagem da dívida. Explicando: a dívida brasileira não é como uma dívida que tenhamos no banco, mas sim uma massa imensa de dívidas e títulos. Como o Brasil não tem superávit nominal, à medida que estes vão vencendo, são pagos e contrata-se igual quantidade de dívida, por mais 1, 2, 4 ou 20 anos. A isso chama-se "rolagem," e o efeito total no dinheiro disponível é zero. Para fazer a conta refletida no gráfico acima, integraram os pagamentos de juros - o dinheiro gasto efetivamente - e a rolagem ("amortizações"). Pôr a rolagem na conta de gastos é, mal comparando, como se você não pagasse a conta integral do cartão de crédito e contasse tudo que ficou devendo como gasto mensal, ao invés de apenas o que está pagando.
Ora, um gráfico equivalente da receita federal teria, pela mesma lógica, que incluir a dita cuja. Em outras palavras teria como maior fonte de receitas, com proporção similar à das despesas, "empréstimos bancários." Para ficar claro: ainda que decretasse uma moratória, com todos os efeitos negativos dela consequentes, o governo não teria quase o dobro do dinheiro de que dispõe, mas uns 10% a mais. A proporção do orçamento brasileiro gasta com juros da dívida é alta e vergonhosa, mas não chega nem à metade daquela mostrada nesse gráfico, e assemelha-se àquela gasta com a previdência. Tentando explicar de outro jeito: o Brasil não está pegando 100 mariolas de imposto e dando 40 pros bancos. Ele está pegando 65 mariolas de imposto, 35 mariolas emprestado dos bancos, e pagando 40 mariolas pros bancos. Se declarar a moratória, como não vai ter mais banco dando dinheiro, ele não fica com 40 mariolas a mais, fica com 5. (Isso num ano normal; ano passado, com nada.)
É até uma questão de não subestimar a inteligência alheia nem crer na maldade abnegada: se a proporção fosse essa mesma, qualquer governante declararia a moratória, dobraria o orçamento disponível com uma canetada, e instauraria um Reich de mil anos. Dilma, Lula, e FH seriam não apenas perversos, mas perversos dispostos a sacrificar o próprio poder (e riqueza, se quiser ir por esse lado - imagine a Odebrecht com um orçamento da União dobrado) pra ferrar com o país.
Não que eu imagine, pela grita sobre a diminuição dos juros da poupança, que boa parte das pessoas de classe média que repassa esse gráfico, detentoras de poupanças e fundos de renda fixa, ficasse assim tão feliz com a moratória, ou mesmo queda acentuada dos juros (esta sim sendo uma excelente ideia). Ou alguém acha que na Suíça se ganha 6% ao ano em aplicação segura? Ou que os próprios títulos não estariam incluídos na tal moratória, e sim só os "dos ricos" (que sempre são os outros). Mas não seria só a classe média que sofreria os efeitos dum calote. A quebradeira bancária teria efeitos negativos em toda a economia do país - o que reduziria as receitas tributárias, anulando a vantagem de economizar as atuais despesas com juros. Nunca é demais lembrar: ao contrário do Equador ou da Grécia, no Brasil a maior parte da dívida é interna, não externa. É devida a instituições e pessoas brasileiras.
E pra deixar claro: em termos econômicos, a "
auditoria cidadã," que é vendida como uma redenção da pátria que anularia a dívida contraída por meios escusos, seria apenas um calote com motivação política. Não estou dizendo que não houve dívida contraída por motivos escusos (segurar o dólar em 1998 pra reeleição foi no mínimo eticamente questionável), mas que a auditoria é tanto desnecessária quanto irrelevante. (E sinceramente, quem divulga o gráfico acima não é confiável. Ou entende como funciona dívida pública, e acha que os fins justificam meios desonestos, ou não entende.)
Primeiro a irrelevância: não sei se fui claro ao descrever a rolagem. O que ela significa é que a dívida que estamos pagando hoje NÃO é a dívida contraída por FH, Itamar, Collor, ou mesmo Lula, em sua maior parte. São papéis relativamente novos, contraídos para pagar a dívida que vencia. De novo a analogia do cartão de crédito (vamos ver até onde dá pra forçar sem que ela quebre): pense numa pessoa que tem dois cartões de crédito, e usa um para pagar o outro. Dizer ao banco Mansa Musa que a compra feita no banco Maeda estava errada, quando você só sacou dinheiro no banco Mansa Musa, vai fazer com que este perdoe a sua dívida? Agora imagine que não tem só Maeda e Mansa Musa nessa cadeia, mas entre eles o Fugger, o Médici, a Mendes, uns trocentos elos. Por que o banco com quem você pegou dinheiro ontem, pra pagar a dívida de antes de ontem, perdoaria essa dívida se você demonstrar que láaaa atrás a dívida original era ilegítima?
E a desnecessidade, que é até mais importante: se não se preocupar com os efeitos econômicos, o Brasil não precisa de absolutamente auditoria nenhuma para pagar a sua dívida soberana. É isso que "soberano" significa. O Brasil é um país independente, e os tempos das canhoneiras européias estacionadas no porto para forçar pagamento (
o Haiti sofreu bastante com isso) estão no passado. Se Dilma quiser declarar moratória (o nome técnico pro que se chama de calote, e o resultado almejado de uma auditoria cidadã), pode fazer isso porque sim. Porque acordou de mau humor. Como forma de performance artística, chamando a Marina Abramovic pra ler o decreto.
E as auditorias na Grécia e no
Equador? Bem, elas demonstram o ponto: as duas não foram absorvidas pelo mercado de dívida como algum tipo de perdão bancário, mas como calote. Os juros pagos subiram após essa moratória parcial. A denúncia das condições escusas das quais se originou o endividamento, do sistema-mundo iníquo, não vão sensibilizar o coração de quem importa, que é o dono da dívida. Ela pode servir, no máximo, como justificativa política para uma moratória - que, de novo, o país pode fazer sem nenhuma auditoria, no dia que quiser. O problema é que o Brasil já quis, mais de uma vez, e em nenhuma dessas vezes o resultado final foi lá tão bom (lembrando de novo que o gasto público com a dívida não é de 40% do orçamento, e sim abaixo de 10 - e ano passado foi zero).
A última foi em 1987, sob o Sarney. Sim, aquele Sarney. Não que uma moratória seja sempre a pior opção - na Grécia, ou na Argentina, recentemente houve crises de dívida realmente insustentável. Mas quem fala em auditoria da dívida tem que ter em mente que o efeito econômico, qualquer que seja a justificativa política, é complicado.
A auditoria da dívida é sedutora porque lida com duas narrativas da simplicidade. A primeira é o diagnóstico: não aconteceu uma situação complexa e difícil de entender pra se chegar aonde estamos, o que aconteceu foi que homens maus nos feriram, e depois que os denunciarmos, os exorcizarmos, jogarmos um balde de água na cara deles até que derretam, vamos nos redimir. A segunda é o prognóstico: pra resolver a situação, não precisamos de resolver problemas complicados. Não há interesses divergentes, entre os bons, para serem conciliados. Depois de denunciarmos e pisarmos nos maus, todos os bons viverão felizes na Cocanha. (Sim, dobrar o orçamento federal sem nenhum efeito negativo daria uma bela duma Cocanha.) É sedutor, mas - como o gráfico de pizza, como a maioria das soluções simples - é mentira.
PS O faq do movimento auditoria cidadã tem esta pequena resposta à questão da rolagem:
MENTIRA. Frequentemente, pessoas ligadas ao governo afirmam que parte destes 40,3% seria apenas “rolagem” ou “refinanciamento” da dívida, ou seja, o pagamento de amortizações (principal) da dívida por meio da emissão de novos títulos (nova dívida). Portanto, isto seria apenas uma troca de títulos velhos por novos, não representando custo para o país. Porém, a recente CPI da Dívida realizada na Câmara dos Deputados revelou que grande parte desta “rolagem” ou “refinanciamento” contabilizada pelo governo não representa pagamento de principal, mas sim, o pagamento de juros. Portanto, a capacidade de endividamento do país está sendo utilizada para pagar juros e encher o bolso dos bancos, ao invés de, por exemplo, financiar a melhoria da saúde, educação, transportes, etc.
Bem, ela é confusa, na melhor das hipóteses. Dizer que é rolagem não significa dizer que se está pagando o "principal" da dívida (de novo, não há um principal no sentido de uma dívida privada). Não é um julgamento de valor, como o embutido nessa resposta, mas uma definição da coisa. Significa dizer que o dinheiro para esse pagamento está vindo de novos empréstimos, e não de impostos arrecadados, só. Nem foi necessária pra ver isso a CPI da dívida - que, aliás, já fez basicamente o que uma auditoria teria para fazer, com todos os recursos do Congresso.
O relatório está aqui. As informações sobre a dívida não são secretas, podem ser consultadas na internet a qualquer momento, o que faz da invocação da CPI um artifício retórico, assim como falar da saúdeeducação.
PPS Repetindo: já foi feita auditoria da dívida, pelo Congresso Nacional, eleito pelo povo (pode ser uma bosta a democracia, mas inda não achei a opção melhor), com todos os seus recursos. O pedido de outra "auditoria," por gente que parece pouco disposta a fazer perguntas e mais a apresentar respostas prontas, é antes um pedido de moratória versão apito de cachorro. Nada contra - mas que se apresente, ao invés de meias verdades, os prós e contras reais de uma moratória.