segunda-feira, novembro 21, 2011

A Igualdade Racial no Pará

Confiram a entrevista concedida ao blog, via bate papo do Facebook, pelo professor universitário e afro-religioso Arthur Leandro, que neste Dia da Igualdade Racial, revela o quanto a sociedade brasileira e principalmente o Estado continuam omissos na garantia de direitos das comunidades negras que lutam pela afirmação de seus valores culturais e relegiosos.


Diógenes Brandão - Qual é o contexto de discriminação contra as comunidades tradicionais de terreiros?

Arthur Leandro - Nossa situação é fruto da violência da colonização portuguesa que resulta em 04 séculos de perseguição por parte da Igreja Católica - na monarquia portuguesa e império luso-brasileiro. Depois fomos perseguidos pelo estado republicano, pois mesmo que a primeira constituição já tivesse um artigo que garantisse a liberdade de culto religioso, essa liberdade vinha acompanhada de um parágrafo único que dizia que “desde que [o culto religioso] não perturbasse a ordem e os bons costumes”, e, como os juízes dessa causa eram racistas e cristãos, uma religião de gente negra e que canta, dança incorpora e faz oferendas... Era considerada perturbadora dessa dita ordem e bons costumes.

Quando a constituição de 1988 finalmente tira esse parágrafo único do texto constitucional é que legalmente passamos a ter o direito pleno à consciência religiosa e aos cultos religiosos, mas é mais ou menos no mesmo período que um outro fenômeno ganha força no Brasil: o fundamentalismo cristão das seitas neo-pentecostais. A questão problemática é a imposição dos fundamentos teológicos de uma crença sobre a outra através da força, e no caso dos brasileiros, e para piorar a situação, essas seitas fundamentalistas que elegem as religiões afro-brasileiras como “o demônio a ser combatido” usam do poder econômico para fazer campanhas difamatórias através dos meios eletrônicos e digitais de comunicação de massa dos quais são proprietárias, e eles possuem emissoras de televisão e emissoras de rádio - que são concessões públicas do Estado brasileiro através de seu presidente – e esse espaço público concedido pelo presidente é utilizado para juntar um “exercito de Deus”, ou outros nomes como “batalhão de Jesus”, para duas funções: 1) promover uma guerra santa contra as praticas religiosas afro-brasileiras; e 2) promover candidatos a cargos eletivos políticos e, com eles, ou vem gestões da administração pública (principalmente em prefeituras de interior) que promovem verdadeiras caças às bruxas e jogam no lixo a laicidade constitucional do Estado Brasileiro, ou então vem os legisladores a propor Leis que trazem em seus textos (abertamente ou nas entrelinhas) impedimentos às nossas práticas religiosas...

Diógenes Brandão - Mas o que as políticas públicas aplicadas pelos governo federal e estadual mudou essa situação nos últimos 10 anos?


Arthur Leandro - (risos) Muito pouco. Na verdade considero que nenhum governo tem o poder, e nem pode ter a pretensão, de em uma única década mudar a cultura social de segregação que foi construída em cinco séculos de práticas racistas, intolerantes e discriminatórias.


Diógenes Brandão - Então o que foi feito até agora no Brasil de nada valeu?

Arthur Leandro - Eu não estou dizendo isso, mas temos que ter a compreensão de que a luta política não se ganha com varinha de condão de fada madrinha, é uma luta cotidiana – lembras do primeiro aprendizado dos militantes de esquerda e de Direitos Humanos? Dois passos pra frente e um prá trás...
Diógenes Brandão - E falando do Pará, quais as políticas para comunidades de terreiros existentes no Estado do Pará?

Arthur Leandro - No governo Jatene? Nada! Pra quem não se lembra, a campanha do primeiro governo do Jatene em 2002 protagonizou uma das maiores intolerâncias religiosas no estado do Pará. 

Diógenes Brandão - Como foi isso?

Arthur Leandro - O caso foi o seguinte: a gestão municipal era petista, com Edmilson Rodrigues, e o vereador Ildo Terra (PT) havia procurado lideranças de Terreiros para conversas que pudessem instrumentar o seu mandato para a proposição de políticas públicas para povos de terreiros. 

Uma das coisas que eu falei ao Ildo Terra foi que em 1994 o Mansu Nangetu precisava fazer um ritual fúnebre no cemitério, e a prática até então era a de subornar os vigilantes noturnos e fazer esses rituais na madrugada.

Disse que eu convenci os sacerdotes do Mansu que a constituição nos dava liberdade de culto e que não precisávamos mais desses artifícios para realizar os nossos rituais, e então fomos ao cemitério municipal de Santa Isabel às 14h.

O cemitério não estava preparado para nos receber, e em principio o porteiro não nos permitiu a entrada, criando uma situação constrangedora que se resolveu depois de muito stress.

Dessas conversas com a base do governo municipal se traçou diversas ações que promoviam a cidadania da população de terreiros, inclusive um ato administrativo que orientava os funcionários dos cemitérios municipais para o tratamento digno a praticantes de quaisquer religiões e que evitava constrangimentos como o que tínhamos passado.

Um dos resultados dessas conversas foi a Festa das Raças, que aconteceu no final de agosto de 2002 dentro do Palácio Antônio Lemos, e que celebrava a conquista de políticas públicas e cidadania e a visibilidade social que a prefeitura finalmente promovia para povos de terreiros. Essa celebração foi filmada pelo gabinete do então vereador evangélico e fundamentalista Paulo Queiroz (PSDB), e essas imagens foram utilizadas em duas edições grosseiras que misturavam as imagens da festa com imagens de suposto despachos dentro de túmulos e que usavam linguagem jornalística para caluniar o prefeito e as comunidades de terreiros com a seguinte manchete “Prefeito abre cemitérios para macumbeiros violarem túmulos”.

Uma edição de 4 minutos com essa montagem caluniosa que apresentava a população de terreiros como criminosa e violadora de túmulos, foi exibida no SBT no programa do Ratinho em rede nacional, e uma outra de 12 minutos que acrescentava argumentos de que o PT havia feito um pacto com o diabo para ganhar a eleição, foi copiada em DVD e distribuída pelo também evangélico Heitor Pinheiro, que coordenava o comitê de campanha do Jatene e hoje dirige o IAP, para as Igrejas evangélicas fundamentalistas.

No programa do Ratinho (veja o vídeo), e em rede nacional, essa calúnia travestida de matéria jornalística foi veiculada na noite da sexta-feira, dia 1º de outubro de 2002 – A votação em primeiro turno da eleição era no domingo dia 3 de outubro, dois dias depois.

Para encurtar a estória, essa estratégia caluniosa e difamatória que arrecadou votos à custa da humilhação pública e criminalização de práticas religiosas contribuiu com a vitória do Jatene no Estado do Pará contra a candidata Maria do Carmo (PT) que vinha sendo apontada como possível governadora, mas não afetou a vitória do Lula para presidente do Brasil.

Diógenes Brandão - Passada a eleição, o governador eleito, houve políticas públicas de promoção da cidadania de povos de terreiros?

Arthur Leandro - Com um histórico de eleição construído em alicerces de preconceito e intolerância religiosa? É lógico que não! Nenhuma, nada.

Para não dizer que não houve nenhuma política para a população negra, o gestão do PSDB criou o Programa Raízes, mas este era voltado apenas para as comunidades quilombolas rurais, e era política de pão e circo, pois fazia festas, mas que pouco se fazia em termos de regularização fundiária nessas comunidades, um dos principais problemas apresentados por elas.

Eles (os gestores do programa) não entendiam e muito menos atendiam as necessidades do Movimento Negro urbano, não tinham ações voltadas para a juventude, mulheres da cidade e muito menos atendiam diretrizes de cidadania para o recorte afro-religioso.

Diógenes Brandão - Essa realidade já mudou?

Arthur Leandro - Vou começar criticando os governos do Lula e da Ana Júlia, vou começar com os passos prá trás.

Ao mesmo tempo em que o governo Lula cria a SEPPIR - Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial - e com ela elabora e implanta diretrizes que promovem a diversidade étnico-racial, ele faz acordo com o Vaticano para o ensino religioso católico e libera a concessão da Record News e aumenta o poderio do sistema de comunicação da TV Record que é a maior violadora dos Direitos Humanos da televisão brasileira e principal veículo de ataque às religiões afro-brasileiras, e não por acaso, é propriedade de uma igreja fundamentalista.

Também posso dizer que o primeiro ponto negativo do governo Ana Júlia foi à missa católica na sua posse, e logo em seguida o veto para a Lei que criava as cotas raciais na Universidade do Estado do Pará.

Diógenes Brandão - Mas sendo o governante católico, ele também não tem o direito de consciência religiosa?

Arthur Leandro - Claro que a cidadã Ana Júlia tem o direito ao culto, e não estou reclamando de todas as missas semanais que ela, enquanto praticante daquela religião, tenha frequentado, eu reclamo da missa que ocorreu no ato de posse da governadora, porque o ato de posse é uma cerimônia de transmissão do cargo do governante do Estado, e o Estado não é laico?

Eu não tenho domínio legal para me aprofundar nesse assunto, e nem sei se há um entendimento final da justiça brasileira, mas penso assim... Primeiro, é impossível não relacionar o ato político de posse da governante do Estado, ao ato religioso de missa de ação de ação de graças que abençoava o seu governo, e isso ficou muito parecido com o aval religioso que os representantes dos Papas davam aos governantes nas coroações de reis e imperadores europeus e aos dois imperadores luso-brasileiros. Por outro lado, ali, naquele ato, ela representava todo o povo paraense e não apenas a cidadã Ana Julia, alí ela era todos nós, inclusive os afro-religiosos.

E ai a minha conclusão é que naquele ato ou deveriam estar representantes de todas, ou de nenhuma, das religiões que fossem presentes em todo o Estado, as afro-brasileiras, as ameríndias, as religiões orientais, as diversas formas de cultos dos cristãos e toda a diversidade religiosa, senão parece que a crença dos chefes de Estado se sobrepõe sobre toda a diversidade religiosa, como sempre foi no Brasil.

Diógenes Brandão - Você acha que isso pode ser considerado um ato proposital, de afirmação de sua religião sobre as demais ou algo que culturalmente esteja implícito, ou quem sabe entranhado na cultura destas pessoas com outras formações religiosas?

Arthur Leandro - Não! Ao menos não da parte dela, pelo que conheci dela acho que tem haver com a formação cultural, mas isso precisa mudar e como precisa.

Diógenes Brandão - Agora vamos falar dos passos à frente...

Arthur Leandro - (risos) Se eu for avaliar com rigor, há um abismo entre o que nós, comunidades de terreiros, alimentamos como esperança nos governos Lula e Ana Julia e aquilo que foi feito na prática. O problema nem estava na pessoa dos governantes, mas nos costumes sociais que nos faz voltar novamente para o embate político e os passinhos pra frente e pra trás.

No Estado teve um assessor afro-religioso na Casa Civil que pôde estreitar a comunicação das comunidades com a governadora, mas não foi criada a secretaria da igualdade racial como a do governo federal, e as políticas da igualdade foram diluídas em coordenadorias em algumas poucas secretarias como a SEDUC e a SEJUDH, e de Comunidades Tradicionais na SESMA e na SESPA, e sequer foi criada uma coordenadoria de igualdade ou de comunidades tradicionais na SECULT... E essas coordenadorias não tinham orçamento anual para tornar possível desenvolver diretrizes políticas com resultados visíveis e as ações foram pontuais e não tiveram continuidade.

Diógenes Brandão - Qual a sua avaliação então, positiva ou negativa?

Arthur Leandro - Com toda a ambiguidade da situação, são governos que avaliamos que tivemos ganhos nas questões de cidadania e de acesso aos bens e serviços públicos.

Diógenes Brandão - Como assim?

Arthur Leandro - Temos reclamações de baixo orçamento da SEPPIR e da Fundação Palmares, de nenhuma ação nacional de campanhas publicitárias televisivas de combate à intolerância religiosa e respeito à diversidade étnico-racial, da complicada distribuição de recursos de investimentos que concentrou ações na Bahia e no Rio de Janeiro, para contextualizar o sentimento em relação à política na esfera federal eu vou usar trechos de documento assinado por lideranças de todo o Brasil em apoio para a candidatura da presidenta Dilma.

Nós reconhecemos que “foi graças ao Governo Lula que o Povo Tradicional de Terreiro passou a ser tratado com alguma distinção, mas as ações estruturantes do governo federal ainda não chegaram até nós como deviam. A grande maioria ficou fora, não consegue escrever projetos na linguagem oficial do governo, faltou investimento na capacitação de nosso Povo”.

E continua dizendo que queremos a “continuidade das ações afirmativas do governo federal que deram a População Negra o que lhe foi secularmente negado desde a chegada do primeiro negro escravo ao Brasil, entre as que mais se destacam está a criação da SEPPIR, a Saúde Integral da População Negra, a Lei 10.639 e o polêmico Estatuto da Igualdade Racial que não é o que nós quereríamos, mas que é um ponto de partida para novas conquistas”. (ver aqui http://www.peticaopublica.com.br/PeticaoVer.aspx?pi=P2010N3366)

Diógenes Brandão - E no Estado do Pará?

Arthur Leandro - Aqui tivemos conquistas na área da cultura, com ações do Patrimônio Histórico como o tombamento e recuperação das instalações do prédio do Terreiro de Mina Dois Irmãos (ver em http://www.defender.org.br/secult-prepara-tombamento-do-terreiro-de-mina-dois-irmaos/), e, mesmo sem uma coordenadoria para políticas específicas para comunidades tradicionais de terreiros, tivermos a inclusão das culturas de terreiros nas premiações dos editais de Cultura Popular da SECULT. Também tivemos o apoio da Fundação Curro Velho para a programação de celebração do Centenário da Umbanda e para o desenvolvimento de alguns projetos culturais em comunidades de terreiros.

Tivemos conquistas significativas na área de saúde e de segurança alimentar e nutricional, principalmente com o apoio incontestável para as ações da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde e a participação dos agentes da secretaria de saúde em campanhas preventivas em vários terreiros.

Na área de Direitos Humanos nós participamos da elaboração do Plano Estadual de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, que assim como o Estatuto da Igualdade Racial, também não reflete o que queríamos, mas encaramos como um ponto de partida para conquistas futuras. Também tivemos apoio para celebrar datas cívicas como a realização da “Feira Preta” e outras manifestações em celebração ao dia da Consciência Negra, ao dia de combate à intolerância religiosa e outras ações pontuais em comunidades de terreiros.

Diógenes Brandão - Você considera que essas conquistas foram importantes para o conjunto do Movimento Negro?

Arthur Leandro - São muito importantes porque no governo Ana Júlia as pequenas conquistas foram protagonizadas pelas lideranças de terreiros... Por exemplo, no governo anterior do Jatene, a SECULT editou dois CDs de músicas de terreiros, mas foram projetos da professora Anaysa Vergolino, assinadas como pesquisadora da UFPA, enquanto as conquistas no governo Ana Júlia foram projetos elaborados no seio das comunidades de terreiros...

Compreendes a diferença? Apesar de poucas mudanças na estrutura social, no governo Ana Julia foi possível desenvolver o sentimento de pertencimento das comunidades de terreiros, nós nos sentíamos parte da coisa...

Diógenes Brandão - Sim, mas como se deu essa participação?

Arthur Leandro - A cultura da participação talvez seja o maior legado que as gestões petistas em Belém e no Pará tenham deixado para as comunidades de terreiros, desde os congressos da cidade na gestão municipal de Edmilson Rodrigues até as conferências e os conselhos e demais instâncias de diálogo entre a sociedade e a gestão estadual. Hoje nós temos representantes em quase todos esses espaços, representações que aprenderam a lutar pelos seus direitos.

Diógenes Brandão - Como isso foi possível?

Arthur Leandro - Assim como no caso do governo Lula, foi a distinção de tratamento dispensada pela equipe de governo e a valorização dessas comunidades o que possibilitou que nossas lideranças se sentissem fortalecidas para a mudança cultural. 

Falo de mudança de comportamento social, pois quando queremos mudar uma realidade temos que começar a mudar pela cultura, o comportamento... E devo admitir que antes das administrações petistas a cultura era de confinar as comunidades de terreiros em guetos e na invisibilidade social, enquanto hoje nós temos lideranças de terreiros disputando o espaço político em pé de igualdade com outros setores da sociedade, e ocupando esses espaços.
No Estado do Pará, temos representação no Conselho da Mulher, no Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, somos um terço da representação da sociedade no Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial, estamos em quase todas as delegações que representam o estado nas conferências nacionais e estamos da disputa para o Conselho Estadual de Cultura, do qual já fizemos parte, mas que foi destituído por problemas no processo de seleção.

Diógenes Brandão - Aproveite para concluirmos essa entrevista com a liberdade de deixas suas últimas palavras para este blogueiro.

Arthur Leandro - Diante de tudo o que nós conversamos, e mesmo que não possamos afirmar que não exista discriminação e preconceitos contra as comunidades de terreiros do Brasil, do Estado do Pará e de Belém, as diretrizes dos governos Lula, Ana Júlia e Edmilson Rodrigues modificaram aquilo que é o mais importante: A atitude dos povos historicamente excluídos nos processos de colonização e de desenvolvimento regional e nacional, e com isso despertaram a necessidade de protagonizarem a luta pelos seus diretos de cidadão.

Diógenes Brandão -  Boa noite e muito obrigado Arthur!

Arthur Leandro - Boa noite e muito axé pra todos nós!



Nome civil: Arthur Leandro.

Profissão: Artista/ Professor da UFPA.
Nome religioso: Táta Kinamboji uá Nzambi.
Cargo sacerdotal: Táta Kisikar'Ngomba.
Terreiro: Mansu Nangetu – Mansubando Keke Neta.
Religião: Candomblé.
Nação: Angola.
Twitter: @etetuba



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