Eduardo Lauande, no último comícío de Lula em Belém, em sua reeleição.
Caros amigos,
Quando eu lembro do fisiologismo, eu recordo que em 1993 o presidente Itamar Franco chamou o senador Antonio Carlos Magalhães (ACM) para conversar no seu gabinete. A justificativa era saber do senador quais as queixas de corrupção que ele dizia ter contra o próprio governo Itamar. Para surpresa geral, Itamar Franco chamou também a imprensa e tornou a audiência aberta ao público. Com essa atitude, o senador ACM ficou desnorteado porque suas tais queixas eram vazias. Puros sofismas. Foi quando Itamar disse: “[...] com aliados fisiológicos temos sempre que planejar nossas atitudes em projetos e depois publicizar”.
Toda vez que eu lembro dessa passagem do Itamar, eu lembro que muitos dos atores de esquerda neste País e no Pará poderiam estabelecer projeções e metas com os políticos fisiológicos para que os mesmo fiquem pelo menos comprometidos com os projetos do governo e não apenas com os seus interesses pessoais ou de grupos.
É quando eu percebo que falta um projeto macro para que tenhamos principalmente como aliados os fisiológicos. Eu justifico isso porque num Estado como o do Pará, é difícil ganhar uma eleição sem apoio dos fisiológicos. Muito difícil. Infelizmente. Mas podemos construir probabilidades que a longo prazo alcance perspectivas mais democráticas de relação de poder e diminua (porque acabar é difícil) o fisiologismo.
Eu faço essa observação porque a governança aqui no Pará, que diz respeito à capacidade governativa em sentido amplo, isto é, capacidade de ação estatal na implementação das políticas e na consecução das metas coletivas, é quase nula. É nula porque deveríamos ter um conjunto de mecanismos e procedimentos para lidar com a dimensão participativa e plural da sociedade. Sem abrir mão dos instrumentos de controle e supervisão, o Estado deveria torna-se mais flexível, capaz de descentralizar funções, transferir responsabilidades e alargar o universo de atores participantes.
Entretanto, vindo do PSD do Magalhães Barata, passando pelo PMDB de Jader Barbalho (JB) até chegar na alta plumagem tucana almirista, eu posso dizer que esses políticos nunca gostaram de saber da idéia que o Estado na ótica da teoria de agente político, deve pluralizar o espaço político que, por sua vez, devem controlar os burocratas. Porque eles sabem que entre os elementos da governabilidade democrática, tem-se a existência de mecanismos de responsabilização dos políticos e burocratas perante a sociedade. Em seguida, eles teriam que observar que a abordagem seria da lógica dos leques de controle e que permitissem distinguir, com clareza, o espaço público do privado e, dentro do espaço público, o espaço público estatal do espaço público não estatal.
Convenhamos, isso seria uma loucura ou uma aberração aos ditames baratistas, jarderistas e almiristas. Porque nessas três correntes políticas da história do Pará há uma oposição, bem clara, entre o fisiologismo e a perspectiva democrática de governança.
Explico.
Eu tenho duas proposições que resumem essa colisão: 1) o fisiologismo é a apropriação privada da coisa pública; 2) e a barganha do voto apenas pelo prisma fisiológico representa uma desmoralização da democracia.
É por isso que eu argumento que as razões apresentadas para o desvirtuamento da democracia pelo fisiologismo paraense normalmente são: a pobreza, a ignorância, a herança de um passado pré-moderno. A oposição entre o fisiologismo e a perspectiva democrática está, portanto, ao meu ver, assentada numa premissa pouco consistente: uma determinada concepção de política, definida com base na sua variante "patrimonial".
A seguir, o fisiologismo, como bem citou o meu amigo sociólogo Roberto Mendes, é bem retratado como um “filho primogênito do patrimonialismo”. Conseqüentemente, essa variante patrimonial é o que significa dizer que corresponde a um tipo de dominação tradicional caracterizada pelo fato de o líder organizar o poder político de forma análoga a seu poder doméstico.
É quando entra o fator patrimonialista do JB nesta minha análise.
Eu parto com a configuração que JB é o epicentro da política paraense desde 1982. Sendo ele: oposicionista ou governo.
Eu faço aqui um breve (bem breve mesmo!) histórico para justificar essa minha assertiva política.
Em 1982, JB foi eleito governador com apoio das esquerdas (PCB, PCdoB, MR-8 e democratas do MDB), filhos políticos do baratismo e do então governador Alacid Nunes (uma forte dissidência da Arena-PDS). Naquela eleição, JB optou por afrontar o coronel Jarbas Passarinho (PDS) porque sabia que já havia duas situações favoráveis: 1) um claro de deterioração política da ditadura militar; 2) grande parte de sua aliança era também com setores fisiológicos que tinham uma amplitude geopolítica benévola para criar uma perspectiva de vitória.
Mais uma vez sem nenhum projeto societário, em 1986, JB apoiou para o governo do Estado seu antigo aliado de PSD baratista: o então senador Hélio Gueiros. Nesta eleição, JB concretizou seu ideário baratista e maciçamente com apoio estatal também se aliou com seu antigo desafeto: Jarbas Passarinho para o senado. Deu Gueiros e Passarinho.
Em 1990, a barganha político-eleitoral, em particular a distribuição particularista de bens aparentemente públicos (o fisiologismo estatal), não foi vista como incompatível ao processo e aí JB voltou ao governo como uma alternativa patrimonialista ao também patrimonialismo do seu antigo aliado Hélio Gueiros. Nessa luta entre dois baratistas, Hélio Gueiros deixou claro que o fisiologismo, longe de ser um "desvio" (disfunção), era sim um fato "normal" (funcional) no processo eleitoral e com isso apoiou Said Xerfan do PDS de Jarbas Passarinho. Deu JB conjugado com forte apoio de parte do que se tinha de pior do setor oligárquico paraense (aquele que manda assassinar).
Na carona do Plano Real, entra em cena uma nova fase patrimonial: o Estado almirista. Era 1994. O tucano Almir Gabriel derrota para o governo do Estado novamente o aliado de JB: Jarbas Passarinho. Almir uniu-se com um outro maioral do patrimonialismo: Hélio Gueiros (que era o então prefeito de Belém). Num típico acordo patrimonial familiar, Almir coloca o filho do grão-mestre como vice: Helio Gueiros Junior. Deu Almir.
Outra vez na insuficiência de um projeto societário e na ciclotímia de alianças patrimoniais, em 1998, JB uniu-se com Gueiros para o governo e o senado, respectivamente, no intuito de enfrentar a reeleição do grão-tucano-mor. Deu Almir e Gueiros perdeu para um afilhado tucano. Porque o PSDB/PA tinha grandíssima máquina (e bem adicionada com o robusto dinheiro da venda da CELPA) e uma aliança com parte nefanda do setor oligárquico (novamente aquele que manda assassinar).
Em nenhum comprometimento com uma dada ordem democrática, Almir coloca seu afilhado predileto, historicamente oriundo das bases do jaderismo, como candidato ao governo do Estado. Era 2002 e o candidato tucano era o Simão Jatene. No outro antônimo, tinha o PT com uma candidata sem densidade eleitoral: Maria do Carmo. Só que num imprevisto para o próprio PT, ela chegou ao 2º turno. Aí num restituído e “apropriado trajeto patrimonial” dos fisiológicos, Jatene consegue apoio de JB e companhia. E é lógico: deu Jatene.
Pra terminar, logo no início deste ano, JB conversou com lideranças nacionais do PT e disse que para derrotar o retorno do tucano de maior plumagem política, Almir Gabriel, tinha que ter várias candidaturas no 1º turno. Sua tática eleitoral estava certa. O PMDB colocou o Priante (primo de JB), o PSOL colocou ex-prefeito de Belém Edmilson Rodrigues e o PT colocou a senadora Ana Júlia. Com essa divisão, Almir Gabriel entrou fragilizado no 2º turno. Na ânsia de derrotar Almir, JB aliou-se ao PT, logicamente, com a benção imponente do presidente Lula. Deu Ana Júlia.
Assim sendo, pode-se observar que desde 1982, JB ou é o epicentro ou é o grande adjunto político eleitoral. Super sabedor disso, JB vem negociando (ao seu estilo), com sua enorme montoeira eleitoral, seus (possíveis e impossíveis) espaços no interior da máquina estatal com a alta direção do governo da Ana Júlia.
Aí surge o fator JB no futuro governo Ana Júlia.
Na disputa pelo espaço político, JB tem todo direito de disputar porque foi aliado e é merecedor pra isso. Todavia, o mérito que eu coloco no debate político é saber: que níveis vão ser contemplados esses acordos?
Porque senão, com toda sua experiência política, JB vai fazer, ou melhor, impor seu estilo utilitarista (no estilar político: útil pra ele) de aliança e maléfico pra sociedade. Assim tem dizer imediatamente que não é só colocar cargo por cargo, tem que ter comprometimento com a sociedade em projetos societários e não patrimoniais. Seguir o exemplo da tese do Itamar Franco (mesmo que ele não tenha feito isso na sua totalidade de seu governo).
Eu faço essas observações porque eu sei historicamente que o equilíbrio político implantado a partir do jaderismo, filho pródigo do baratismo, combina, em certo sentido, com o pior de dois mundos: aliança fisiológica e o patrimonialismo ineficiente e autoritário. Deste modo, se não houve uma proposta societária, o governo estadual comandado pelo PT vai ficar fragilizado. Logo, logo.
Porque o encaminhamento da possível crise política paraense no próximo governo não pode ser feito a partir de uma ressurreição desse esquema, nem pela subjugação de um de seus lados pelo outro. O que o Pará necessita é completar simultaneamente duas transições fundamentais.
Do lado do Estado deixar definitivamente para trás o ranço patrimonial ineficiente burocratizado e autoritário, em benefício de uma estrutura mais moderna eficiente aberta a informações e inovações, e consciente de suas responsabilidades de condução da sociedade paraense.
Do lado da sociedade, criar também um bom ambiente para uma perspectiva de deixar para trás o fisiologismo esclerosado, dando condições para o desenvolvimento e implantação de um sistema representativo mais real e diversificado da própria sociedade.
Qual a possibilidade de que essas transformações ocorram?
É difícil dizer, mas as condições para sua ocorrência são bastante claras: é necessário que as duas transformações se processem porque senão o governo da Ana Júlia vai nascer comprometido demais pelo fisiologismo e tachado de um governo sem projeto. Naquela célebre interrogação: “Esse governo veio pra fazer o quê?”
Agora se o governo da Ana Júlia tiver altivez, ele pode romper progressivamente com o patrimonialismo, de base fisiológica, e criar bases mais democráticas na relação republicana da governabilidade do Estado com seus partidos aliados, com a oposição e a sociedade.
Isto porque o Estado do Pará necessita de novos, ativos e vigorosos interlocutores na sociedade para que possa efetivamente se modernizar e conduzir o Pará com plenitude. E a sociedade necessita de um Estado eficiente, capaz de desenvolver uma política econômica e social de interesse comum a longo prazo.
Eu insisto nisso, ainda do lado do Estado, porque o governo da Ana Júlia deve demonstrar qual é seu projeto e demonstre que é necessário que ele assuma cada vez mais sua responsabilidade ante a sociedade, tanto no sentido de quem responde e dá satisfação de seus atos, como no sentido de quem assume a responsabilidade e se imbui da função social que deve desempenhar sem cair em acordos fisiológicos, muito menos patrimoniais.
Insisto igualmente do lado da sociedade, que é necessário que os grupos sociais mais articulados se compenetrem de que o Estado e o planejamento da vida social e econômica estão aqui para ficar, que não há mais lugar no mundo de hoje para a simples prevalência dos interesses privados sobre os interesses coletivos, e que por isso, em última análise, seus melhores interesses consistem em aceitar a existência de um Estado democrático que deve ser conduzido a níveis cada vez mais altos de bom funcionamento e acatamento explícito das necessidades societárias.
Nessas circunstâncias, os valores e as ações sociais presentes na sociedade civil passam a entrar em franca oposição aos valores sistêmicos característicos do Estado patrimonial, ensejando transformações nas formas de sociabilidade, bem como alteração recíproca entre a instância de práticas sociais e a instância de produção de objetividade democrática.
Aí eu observo: se o governo Ana Júlia apostar ele pode vislumbrar uma relação democrática, sem cooptação, com os movimentos sociais e que podem contribuir para a mudança nas regras de procedimento e nas formas de participação política, pela difusão de novas formas de organização e, sobretudo, pela ampliação dos limites da política, politizando temas que até então eram considerados da esfera patrimonial de lideranças conservadoras do tipo JB.
Por fim, eu deixo claro que conjeturar a possibilidade de um encaminhamento adequado para os problemas políticos e institucionais do futuro governo da Ana Júlia não é o mesmo que afirmar que este caminho será seguido, e nem mesmo que ele é o mais provável, mas é importante ressaltar que se não avançar neste debate o fator JB vai criar muitas asas e pode suscitar e acender sérias crises pela simples falta de um projeto político societário.
O desafio está lançado.
Aquele abraço,
Lauande.
"A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre do que a grande apoteose".
Nelson Rodrigues.
"Tudo que é sólido, desmancha no ar".
Karl Marx.