O mundo é um lugar estranho. Mais de 750 mil refugiados entraram na Europa em 2015, segundo a ONU. O Estado Islâmico matou 3,5 mil pessoas na Síria no mesmo ano, de acordo com o Observatório Sírio de Direitos Humanos. O zika vírus deve atingir quatro milhões de pessoas na América, como aponta um relatório da Organização Mundial de Saúde. Mas apesar dessas várias crises humanitárias, uma marcha foi marcada em Nova Iorque, em frente à Liga de Futebol Americano, na próxima terça-feira, para protestar contra Beyoncé.
O que ela fez? Cantou sua nova música, Formation, um hino que expõe o racismo nos EUA e o extermínio de negros pela polícia, durante o show de intervalo do Super Bowl, a final do campeonato americano, tradicionalmente a maior audiência da TV mundial que esse ano atingiu a marca de 111,9 milhões de americanos – o equivalente a mais de 55% de todos os seres humanos que o IBGE diz viver no Brasil.
O escândalo que a performance de Beyoncé virou não existe fora de contexto. Os EUA vivem hoje sua eleição mais extremista em décadas. No Partido Republicano, a corrida presidencial é liderada pelo magnata Donald Trump, que defende vigilância sobre as mesquitas americanas, tortura para suspeitos de terrorismo, a deportação de 11 milhões de latinos e a construção de um muro separando o México dos EUA. Já no Partido Democrata, o “socialista” Bernie Sanders, que lidera as primárias até aqui, prega a criação de um sistema único de saúde público e ampliar a rede de universidades públicas do pais, o que é um crime para os ianques mais conservadores.
Foi nesse turbilhão que Beyoncé subiu ao palco do Super Bowl com uma roupa que fazia referência a Michael Jackson e aos panteras negras, uma organização que pregava a revolução negra nos EUA. Junto com as dançarinas, todas de cabelo afro, Bey fez um grande “X” que foi lido como homenagem ao líder separatista negro Malcolm X. Tudo isso enquanto rebolava e cantava: “Eu posso ser um Bill Gates negro em progresso, porque eu mato”.
O clipe de Formation não é menos corajoso. Ele mostra imagens de Martin Luther King e de uma criança negra rendendo um grupo de policiais, seguido de uma pichação onde se lê “parem de atirar em nós”. O vídeo também traz falas de Messy Mya, um youtuber negro morto pela polícia em 2010, e trechos do documentário That B.E.A.T., sobre a bounce music, um estilo de hip hop cantado por grupos negros de New Orleans. No final do clipe, Beyoncé, a mulher negra desacordada, se afoga enquanto um carro de polícia afunda.
Todo o discurso de empoderamento negro causou reação. Uma campanha de boicote à cantora, à Liga de Futebol Americana e à Pepsi, que patrocinou o show, foi criada. A principal voz conservadora contra a artista foi a do ex-prefeito de Nova Iorque Rudy Giuliani, famoso pela ampla campanha de combate à violência, para quem ela desrespeitou a polícia.
Se você acha que o racismo não é mais um tema tão relevante, como chegou a ser dito sobre Beyoncé nos EUA, deixe eu lhe contar um história. Como centenas de pessoas, eu participei do Carnaval do Recife nos últimos dias, uma festa que é vendida pela prefeitura como extremamente democrática por ser gratuita e todo mundo poder participar. No domingo, quando Gaby Amarantos e Fundo de Quintal, dois artistas claramente populares, se apresentaram no Marco Zero, presenciei com uma amiga um vasto número de revistas policiais.
Todos os abordados eram negros e pobres. Eu, que não passei por nenhum tipo de revista, podia muito bem estar portando uma faca ou mesmo um revólver, mas minha pele é mais mais clara e a fantasia não exatamente barata devem ter me tirado da lista de culpados que as nossas polícias são treinadas para procurar. O que sempre diz mais sobre o nosso tipo de sociedade do que sobre a minha índole pessoal.
Claro que a minha experiência empírica não prova nada sobre como a violência tem cor no Brasil. Mas se você quiser um dado concreto, em maio do ano passado a Secretaria Nacional de Juventude da Presidência da República divulgou um relatório segundo o qual um jovem negro tem 2,5 vezes mais chances de ser assassinado do que um branco no País. Pernambuco ocupa o segundo lugar no ranking dos estados. Aqui, as chances de um negro entre 12 e 29 anos ser morto são de 11,57 vezes a de um branco da mesma idade.
Parte dos argumentos usados contra Beyoncé dizem que ela deveria se ocupar mais como uma entertainment, do que em fazer política. Claro, uma das coisas que fazem a música pop ser tão importante para o imaginário popular é que ela pode nos fazer cantar e dançar, extravasando a realidade. Mas ela tem outro lado tão bonito quanto de nos fazer enxergar nossos preconceitos e injustiças, provocando nossa sociedade a avançar. E é por isso que essa coluna sobre música pop pode falar sobre racismo pra lhe lembrar que não faz diferença se você é preto ou branco, menino ou menina.
Apesar de nunca ter escondido seu apoio pessoal ao atual presidente Barack Obama, Beyoncé sempre foi cobrada por se posicionar mais em defesa dos negros. Com Formation, ela sabe que mudou isso. “Você sabe que essa vadia causou toda essa conversa. Continue grato, a melhor vingança é o seu dinheiro”, canta no final da música. No Super Bowl, ela ofuscou Coldplay, Bruno Mars e Lady Gaga e aproveitou para anunciar uma nova turnê mundial. Beyoncé está cada vez mais rica, ela é poderosíssima.
Para ouvir: Impossible Winner (The Dead Weather) – Separados, Jack White, Alisson Mosshart, Dean Fertita e Jack Lawrence já são incríveis. Desde 2009, eles também formaram o The Dead Weather, um supergrupo de blues rock que acaba de lançar um CD novinho com faixas como I Feel Love (Every Million Miles), Buzzkill(er) e Impossible Winner.
Assista agora o vídeo sobre a repercussão do episódio na imprensa americana.
Assista agora o vídeo sobre a repercussão do episódio na imprensa americana.