Por Philippe Ladvocat, no
BrasilPost.
Sempre que discussões como o feminismo, os direitos das mulheres ou a violência contra minorias vêm à tona, um grupo de pessoas (com muitas características em comum) é insistente em bradar que não pode ser enquadrado na mesma categoria por não ser estuprador, violento, pedófilo ou homofóbico.
A questão é sempre a mesma: "temos que pagar o pato pelos erros dos outros?". E aqui vai uma notícia para você: sim, você tem que pagar o pato. Nós temos que pagar o pato. E sabe por quê?
Porque essas pessoas que sofrem a violência e a desigualdade diariamente vêm pagando o pato há muito tempo. E agora é hora de acertar as contas.
Quando eu era mais novo, insistia em dizer que não existia dívida histórica porque eu não escravizei ninguém.
O que eu falhava em perceber é que uma sociedade completamente dividida em que negros não usufruem dos mesmos direitos dos brancos, são olhados com desconfiança em um País de mestiços e são tratados, muitas vezes, como cidadãos de segunda classe (se é que são tratados como cidadãos), há sim uma dívida histórica e essa conta ficou para todos nós.
E os juros continuam subindo e destruindo qualquer esperança de uma sociedade justa.
E aí é que entra a conivência geral, mesmo quando você não é o indivíduo ameaçando ou abusando.
O brasileiro adora se orgulhar de levar a vida com leveza e bom humor. Adora rir de tudo e dizer que é especial porque faz piada mesmo com as mazelas da vida.
E assim explica-se boa parte do problema: tudo é engraçado, tudo vira humor, nada é levado a sério.
Boa parte dos brasileiros prefere compartilhar a zuêra para ganhar curtidas no Facebook, se perde nas tirinhas infames, nas montagens ridículas, na boçalidade diária de não levar nada a sério. Esquece da filosofia, da história, do contexto, para divulgar uma idiotice ofensiva -- seja política ou social.
O que importa é ganhar um "hahaha" ou um "rsrs", não é discutir, debater ou desenvolver uma sociedade melhor. Até que ponto vale realmente a pena ridicularizar absolutamente tudo em vez de criar discussões válidas e embasadas?
A primeira herança da ditadura militar já sabemos bem: as instituições públicas absolutamente sucateadas (ou você acha que a educação pública, a segurança das grandes cidades e o sistema de saúde se tornaram todos tão caóticos durante os anos 60, 70 e 80 por coincidência?).
A outra herança é uma geração de desinformados que, com o acesso às novas mídias sociais e a falta de noção da importância de se apurarem os fatos (para isso existe, em teoria, o jornalismo), grita seus preconceitos, indignações seletivas e revoltas preguiçosas aos quatro ventos, sem nem se preocupar em entender definições.
Às vezes sabem que a notícia é falsa, mas não importa. Fora o humor canalha, a ridicularizarão do outro, que vale mais do que uma discussão saudável. Os adjetivos preconceituosos, a piadinha elitista para sugerir que os pobres são todos bandidos e/ou ignorantes, está tudo lá, substituindo o argumento.
Junto com parte dessa geração (a parcela que se revolta mas não se informa), os filhos mimados e igualmente preguiçosos, ex-alunos medíocres, que perderam a oportunidade de criar um senso crítico -- qualquer que seja a ideologia.
Junto com seus erros gramaticais, repetem as falácias cansadas, vazias e superficiais e se orgulham de dizer que são contra o governo (qualquer que seja), o feminismo, a igualdade de gêneros, os direitos homossexuais, a proteção ao meio ambiente, a diminuição da quantidade de carros nas ruas, porque "nada disso é importante".
Pedem disciplina, cadeias, punição, gasolina barata, reduzem tudo a dois lados e não percebem a ignorância do mundinho em que estão inseridos: um pensamento erradicado em boa parte do mundo há décadas mas que persiste naqueles que não se esforçam para considerar algo diferente daquilo que acham que produziram com o próprio cérebro.
Já sabemos que grande parte dos comentários altamente intolerantes vem da lavagem cerebral promovida pelos oportunistas falsamente religiosos, mas existem os outros intolerantes que acham que têm o direito de fiscalizar a vida alheia, seja em suas relações amorosas, em sua decisão sobre o corpo ou em sua luta pela igualdade onde quer que seja.
São os tipos patéticos que reclamam da falta de humor alheio, que acham que "tudo virou fobia" e que confundem a liberdade de expressão com a mediocridade de suas palavras. Que acham que só aquilo que conhece importa e danem-se os outros porque são uma parcela menor da população.
Que acham que lutar por direitos é garantir privilégios enquanto os verdadeiros privilégios são os de não ter que lutar por nada.
São aqueles que comentam uma 'piadinha' ou um comentário 'revoltado' sobre um ex-presidente no vídeo de um cachorro fazendo algo engraçado.
São os obcecados que não deixam ninguém em paz porque precisam descontar as próprias frustrações em qualquer culpado que vá gerar curtidas no comentário.
São aqueles que reduzem o mundo a dois lados, a direita e a esquerda, sem perceber a complexidade do pensamento crítico e sem lembrar que aquela cagada histórica chamada Muro de Berlim caiu faz muito tempo.
E toda essa violência verbal (e às vezes física mesmo) que clama por morte (do bandido pobre ou do político), por punição, pelo fim da defesa dos direitos humanos, que acha que a disciplina pura vai resolver o problema, só demonstra a falta de vivência, de experiência e de diálogo.
Quem vai atrás do "bandido bom é bandido morto" ou do "leva pra casa" claramente nunca se preocupou em conversar com quem dá aula na favela.
Quem fala "feminazismo" nunca parou pra pensar em quão tosca e desrespeitosa é essa comparação (inclusive com os próprios judeus).
Quem acha graça em piada com mulher sendo violentada não pensa na mãe, na namorada ou na irmã vivendo essa situação.
O Brasil caminha, ou corre, em direção ao extremismo, à intolerância, ao radicalismo. Os mesmos que vimos destruir países do Oriente Médio, que às vezes nem parecem tão distantes do gigante latino.
E se o País não fizer meia volta e começar a usar a empatia como combustível, o destino final pode ser terrível.